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Legítima defesa: afinal, quando é legítimo matar para se defender?

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Sam Guzman - publicado em 28/09/18

"Os Doutores da Igreja e o Magistério deixam claro que a autodefesa legítima não é apenas um direito, mas, em certos casos, é também um dever"

Imagine que você está à procura de uma vaga de estacionamento no shopping durante um fim de semana de lojas lotadas. Você finalmente vê uma vaga sendo liberada e, rápido, estaciona o seu carro nela. Só que, por causa do grande tráfego no shopping, você não viu que outro motorista estava esperando havia 5 minutos para usar aquela mesma vaga. Você tomou o lugar deles em se dar conta.

Quando você e a sua família saem do carro, aquele motorista salta do dele furioso, berrando barbaridades. Ele é grandalhão e pode fazer um estrago sério. Você tenta acalmá-lo e explica que não o tinha visto, mas a conversa não está funcionando. Ele puxa uma faca e começa a brandi-la agressivamente, enquanto vai se aproximando de você. Sua família está apavorada. O que você faz?

A autodefesa é sempre justificável?

Espero que a situação acima nunca aconteça com você, mas cenários como esse acontecem o tempo todo. Como homens católicos, é justo defendermos a nós mesmos e as nossas famílias? Ou devemos humildemente oferecer a outra face, aconteça o que acontecer?

A resposta curta é: sim, a autodefesa é justa. Os Doutores da Igreja e o Magistério deixam claro que a autodefesa legítima não é apenas um direito, mas, em certos casos, é também um dever. O Catecismo explica com exatidão em quais casos a autodefesa é legítima. Vamos dar uma olhada no que ele diz.

Primeiro, o Catecismo esclarece que matar um ser humano é sempre grave e jamais pode ser encarado como coisa trivial. É evidente que não devemos agir como cães de guarda ferozes e felizes por matar qualquer um que nos olhe torto (2261-2262). Mas o Catecismo prossegue a explicação dizendo que o princípio fundamental da moralidade é o amor e a preservação de si mesmo (2264).

“O amor para consigo próprio é um princípio fundamental da moralidade. É legítimo zelar pelo respeito ao próprio direito à vida”.

Dito em outras palavras, amar o próximo não significa nada quando não se ama a si mesmo de modo ordenado pela razão. Não à toa, Jesus disse: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. O instinto de autopreservação vem do fato de que a vida é um bem recebido de Deus. Temos o direito intrínseco e fundamental de viver e, portanto, o direito de nos defender.

E quanto a defender os outros? Também temos o direito? Sem dúvida. Mais do que um direito, defender o inocente é um dever. Nós podemos dar a própria vida por um bem maior, como Jesus e os mártires da Igreja fizeram, mas não temos o direito de entregar a vida dos outros. O Catecismo deixa claro (2265):

“A legítima defesa pode ser não somente um direito, mas um grave dever para o responsável pela vida de outrem. A defesa do bem comum exige que um injusto agressor seja impedido de causar danos. Por esta razão, aqueles que legitimamente detêm autoridade também têm o direito de usar de armas para repelir os agressores da comunidade civil confiada à sua responsabilidade”.

Embora este número se refira especificamente à defesa da comunidade civil, ele se aplica também à família. Se alguém apresenta um claro perigo para a vida da sua esposa e dos seus filhos, você tem o direito e o dever de fazer o necessário para impedi-lo, mesmo que isto signifique matá-lo. E isso me leva ao meu próximo ponto.

Força letal

Ficando entendido que a autodefesa é justificável, surge a questão da “força letal”. Podemos, justificadamente, matar um agressor? Há um bom número de católicos com inclinação pacifista que diriam que não. Apesar dos sentimentos desses católicos bem intencionados, a resposta da Igreja é sim, a força letal pode ser justificável.

Antes de examinar o que justificaria matar um ser humano, porém, deixem-me dizer que a Igreja é e sempre foi uma defensora do bom senso. A Igreja defende a sanidade numa época que se tornou insana, e esta sanidade se aplica a todas as áreas da vida, incluída a autodefesa. O que eu quero dizer? Bom, eu sou ex-membro da Colorado Rangers, uma agência privada de segurança que presta serviços ao Estado, e recebi praticamente o mesmo treinamento que é obrigatório para os policiais norte-americanos. Eu fico impressionado com a grande semelhança que existe entre as normas sobre o uso da força letal apresentadas aos agentes da lei e as normas apresentadas no Catecismo. Confiem na sabedoria da Igreja, meus caros.

O Catecismo esclarece que a força letal pode ser justificada se não restar nenhuma outra escolha. Matar deve ser o último recurso, depois que todas as alternativas já tiverem sido tentadas. Citando Tomás de Aquino, o Catecismo diz (2264):

“Quem defende a própria vida não é culpado de assassinato, mesmo que seja forçado a desferir no agressor um golpe mortal.Se um homem usar em legítima defesa mais violência do que a necessária, esta será ilícita: mas se repelir a força agressora com moderação, sua defesa será lícita (…) Não é necessário, para a salvação, omitir a autodefesa moderada a fim de evitar matar o outro, já que cada um deve cuidar da própria vida prioritariamente à de outra pessoa”.

S. Tomás de Aquino, citado pelo Catecismo, está basicamente dizendo: “não atire em alguém que está roubando a sua carteira”. Essa violência é maior do que a força necessária. Mas se alguém puxou uma faca e tudo indica que ele vai usá-la para agredir você, é seu direito responder com a mesma força para se defender. Defender-se da violência com uso equivalente de força é aplicar a moderação na legítima defesa.

A ideia de moderação no uso da força é muito parecida com o “uso do continuum de força”, dos policiais norte-americanos. Os detalhes deste continuum vão além do escopo deste texto, mas se resumem a esta máxima: “não atire, a menos que você não tenha escolha”. Se a sua vida ou a de alguém está em perigo iminente, é seu direito usar a força letal. Se houver qualquer outra possibilidade eficaz, como comandos verbais, combate físico, spray de pimenta, etc., você tem a obrigação de tentar primeiro esses recursos.

Conclusão

Os princípios orientadores estabelecidos pela Igreja podem ser resumidos assim:

– Temos o direito legítimo à autodefesa, baseado no ordenado amor por nós próprios; – Temos o dever de proteger quem está sob os nossos cuidados, como a nossa família; – A força deve ser usada com moderação, em nível equivalente à força contrária; – Tirar uma vida humana em legítima defesa deve ser o último recurso, quando todas as alternativas estiverem esgotadas.

A autodefesa pode ser uma questão complexa, especialmente quando envolve a força letal. Situações de vida ou morte implicam decisões em que alguém pode morrer e o curso da própria vida pode ser alterado. Nunca, jamais, uma vida humana pode ser tirada de forma descuidada.

Termino com uma citação da carta encíclica Evangelium Vitae, do papa João Paulo II, sobre a tensão entre o respeito pela vida humana, a obediência ao quinto mandamento e a autodefesa. Ele resume a questão perfeitamente.

“Há situações em que os valores propostos pela Lei de Deus parecem envolver um verdadeiro paradoxo. Isso acontece, por exemplo, no caso da legítima defesa, em que o direito de proteger a própria vida e o dever de não causar dano à vida de outro são difíceis de conciliar na prática.

O valor intrínseco da vida e o dever de amar a si mesmo não menos do que aos outros são a base do verdadeiro direito à autodefesa. O exigente mandamento do amor ao próximo, previsto no Antigo Testamento e confirmado por Jesus, pressupõe o amor a si mesmo como a base de comparação: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (Mc 12,31). Por conseguinte, ninguém pode renunciar ao direito à autodefesa sem faltar ao amor pela vida ou por si próprio. Essa renúncia só pode ocorrer em virtude de um amor heroico, que aprofunda e transfigura o amor a si mesmo em radical oferta pessoal, de acordo com o espírito das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5,38-40).

O exemplo sublime dessa oferta de si próprio é Jesus mesmo. Além disso, a legítima defesa pode ser não somente um direito, mas um grave dever para quem é responsável por outra vida ou pelo bem comum da família ou do Estado. Infelizmente, a necessidade de impedir o agressor de causar danos, por vezes, implica tirar-lhe a vida. Neste caso, o resultado fatal é atribuível ao próprio agressor, cuja ação foi a causa desse efeito, ainda que ele não possa ser moralmente responsabilizado devido a falta de uso da razão”.

E você, saberia se defender ou defender a sua família se precisasse?

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