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Em pleno 2018, um novo cisma abala os cristãos

ORTHODOX

Saint-Petersburg Theological Academy-(CC BY-ND 2.0)

Reportagem local - publicado em 23/10/18

Acaba de acontecer a maior ruptura desde o grande cisma de 1054

No último dia 15 de outubro, o Patriarcado de Moscou rompeu com o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla.

Não se trata de uma ruptura teológica: o motivo é territorial e político. No dia 11, o patriarca ecumênico Bartolomeu I, de Constantinopla, tinha concedido a autocefalia (independência) à Igreja Ortodoxa na Ucrânia, que, até então, dependia da jurisdição russa. Em reação, o patriarca Kirill, de Moscou, rompeu a comunhão eucarística dos russos ortodoxos com o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla e, por conseguinte, com todas as Igrejas ligadas a ele.

A medida representa um novo e grave cisma entre os cristãos, considerado o maior da história depois do grande cisma de 1054, que separou Constantinopla de Roma e que perdura até hoje.

Este cisma de 2018 fragmenta a “comunhão plena” da ortodoxia, pela qual os sacerdotes de diferentes patriarcados podiam celebrar juntos e os fiéis de uma Igreja ortodoxa podiam receber os sacramentos em outra. Agora, isto deixa de valer para os russos, que se isolam da comunhão com os demais cristãos ortodoxos.

PATRIARCH KIRILL AND PATRIARCH BARTHOLOMEW
Sergey Pyatakov / Sputnik / AFP
Patriarcas Kirill, de Moscou, e Bartolomeu, de Constantinopla

Para entender melhor o que aconteceu nesta metade de outubro, é preciso retornar alguns séculos na história.

O nascimento de Constantinopla

No ano 330 d.C., o imperador romano Constantino decidiu criar uma “nova Roma”: com a Roma antiga avançando inexoravelmente rumo à decadência, ele transferiu a capital do Império para a cidade de Bizâncio, que foi então renomeada em homenagem a ele e passou a ser chamada de Constantinopla. Trata-se da atual Istambul, a metrópole da Turquia moderna e uma das maiores cidades do planeta.

Em 381, o bispo de Constantinopla reivindicou um “primado de honra” entre as Igrejas cristãs devido à posição da cidade como capital imperial. Esse reconhecimento o destacaria entre os demais patriarcas cristãos e, em termos honoríficos, o colocaria logo abaixo do Papa, cuja sede continuava em Roma.

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Nevit Dilmen-cc

Istambul, antiga Constantinopla

Depois da morte do imperador Teodósio, que, sediado em Constantinopla, foi o último a governar um Império Romano ainda unificado, consumou-se a fatídica divisão do Império Romano entre Oriente e Ocidente. A partir dessa divisão política, as pretensões do bispo de Constantinopla encontraram suficiente acolhimento no Concílio de Calcedônia, em 451, para alçá-lo a um posto de honra e lhe conceder jurisdição sobre várias dioceses. Esta decisão, porém, nunca foi reconhecida pelo Papa, dado que foi tomada depois que os legados de Roma no concílio já tinham retornado ao Ocidente.

O surgimento da ortodoxia

Em Constantinopla continuou a fortalecer-se a convicção de que cabia ao bispo local um patriarcado com autoridade absoluta, ainda que honorificamente inferior ao papado. A separação ia se tornando mais nítida com as diferenças culturais entre o mundo latino e o greco-oriental, que se estendiam também a certas concepções teológicas. Mas as diferenças mais críticas eram principalmente políticas: os imperadores do Oriente não queriam, afinal, que a Igreja do seu império estivesse submetida à autoridade estrangeira de um Papa sediado em Roma. Isto os levava de modo natural a apoiar as pretensões de independência dos patriarcas orientais.

Chegou a ocorrer um breve cisma entre os anos de 863 e 867, encerrado pelo patriarca Fócio, de Constantinopla. Mas o grande cisma não pôde ser evitado: em 1054, quando as relações com Roma já eram praticamente nulas, o patriarca Miguel Cerulário se empenhou em evitar as tentativas de restabelecê-las. Reabriram-se nesse contexto as polêmicas já iniciadas por Fócio, séculos antes, a respeito das diferenças entre os ritos e costumes latinos e os greco-orientais. Enfatizaram-se ainda discordâncias teológicas e, principalmente, deixou-se de reconhecer o primado de jurisdição do Papa, numa decisão em que as demais Igrejas do Oriente seguiram a de Constantinopla. O cisma estava consumado: o mundo cristão se dividiu então entre romanos e ortodoxos.

As diferenças entre ortodoxos e católicos

O termo “ortodoxo”, em grego, quer dizer “doutrinalmente correto“. No entanto, as diferenças no tocante à doutrina católica são muito poucas. A mais expressiva diz respeito à procedência do Espírito Santo: para os ortodoxos, Ele procede apenas de Deus Pai, enquanto os católicos professam que Ele procede do Pai e do Filho. Esta discordância teve grande peso no cisma de 1054, mas hoje é entendida como uma diferença de ênfase teológica e não propriamente como uma diferença de dogma.

A proximidade doutrinal é tão grande que a Igreja católica considera válidos os sacramentos celebrados pelas Igrejas ortodoxas. Isto também se deve ao fato de que a Igreja católica reconhece que as ortodoxas preservam legitimamente a sucessão apostólica.

Grosso modo, a grande questão que as mantém separadas é mesmo a do primado de jurisdição do Papa.

Outras diferenças menores entre católicos e ortodoxos estão ligadas ao calendário, a normas disciplinares e a costumes culturais.

ORTHODOX
Saint-Petersburg Theological Academy-(CC BY-ND 2.0)

As diferenças dos ortodoxos entre si

Existem 14 Igrejas ortodoxas autocéfalas, ou seja, independentes umas das outras. Elas reconhecem o primado honorífico do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, mas não estão sujeitas à sua jurisdição. Esse primado tem caráter apenas simbólico: o patriarca de Constantinopla é comumente descrito, em latim, como “primus inter pares“, isto é, “o primeiro entre os iguais“.

Em termos doutrinais, todas essas Igrejas professam a mesma fé e celebram basicamente os mesmos ritos, com algumas diferenças culturais.

As 14 Igrejas autocéfalas incluem os 4 patriarcados da antiguidade (Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém, que, junto com Roma, formavam a “pentarquia” do primeiro milênio cristão). As outras 10 são as Igrejas da Rússia, da Sérvia, da Romênia, da Bulgária, da Geórgia, de Chipre, da Grécia, da Polônia, da Albânia e, conjuntamente, a da República Tcheca e Eslováquia.

Existe também a Igreja Ortodoxa da América, sediada em Nova Iorque, mas a sua autocefalia não é reconhecida por todas as Igrejas – Constantinopla, emblematicamente, não a reconhece.

Rumando à unidade cristã

Até o século XX, os líderes da Igreja católica e das Igrejas ortodoxas não tinham realizado nenhum encontro desde o cisma de 1054.

A primeira reunião aconteceu em 1964, quando o Papa Paulo VI se encontrou em Jerusalém com o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Atenágoras, e ambos levantaram as mútuas excomunhões que estavam em vigor havia 910 anos.

O diálogo foi se aprimorando cada vez mais a partir desse histórico reencontro. O Papa João Paulo II, um dos maiores propulsores do diálogo ecumênico e inter-religioso de todos os tempos, enfatizou com força a necessidade da “comunhão afetiva” antes de se chegar à “comunhão efetiva”.

O Papa Bento XVI viajou à Turquia em 2006 para visitar o Patriarca Ecumênico Bartolomeu, que retribuiu a visita em 2008 em plena festa de São Pedro e São Paulo: na ocasião, Papa e Patriarca deram uma homilia conjunta e rezaram juntos o credo em grego. No mesmo ano, Bartolomeu participou do Sínodo dos Bispos no Vaticano.

BARI,POPE FRANCIS
Antoine Mekary | Aleteia

Em 2013, Bartolomeu compareceu à missa de inauguração do pontificado de Francisco, um fato inédito desde o cisma de 1054. Em 2014, Francisco e Bartolomeu repetiram o encontro de Paulo VI e Atenágoras para celebrar os 60 anos do encontro de Jerusalém. Pouco depois, Bartolomeu voltou a estar presente no Vaticano quando o Papa Francisco reuniu para um momento de oração os presidentes de Israel e da Palestina. Francisco ainda dedicou uma seção de sua encíclica Laudato Si’ aos ensinamentos de Bartolomeu sobre os cuidados que devemos ter com o meio ambiente. Em 2017, o Papa também se dispôs a alterar a data em que os católicos celebram a Páscoa, visando celebrá-la simultaneamente com os ortodoxos.

A tensa relação entre católicos e ortodoxos russos

Um dos mais importantes passos pendentes na aproximação entre as Igrejas ortodoxas e o catolicismo era o encontro entre um Papa e o Patriarca de Moscou.

Esse evento é particularmente importante devido ao grande peso da Igreja russa dentro do mundo ortodoxo: trata-se da mais numerosa das Igrejas ortodoxas autocéfalas, com cerca de 150 milhões de fiéis, praticamente a metade do total.

O encontro era dificultado principalmente por acusações de proselitismo dirigidas pelos ortodoxos russos aos católicos do país, embora apenas 1% dos russos sejam católicos.

As relações foram sendo aquecidas por encontros cada vez mais frequentes entre delegações das duas Igrejas.

Assim como seu antecessor, o Patriarca Kirill sempre se mostrou muito crítico no tocante à Igreja católica, mas, ao abrir o sínodo dos bispos ortodoxos russos em 2013, reconheceu “a necessidade de unir forças em defesa dos valores tradicionais cristãos e de se contrapor a algumas ameaças da modernidade, como a secularização agressiva, que ameaça as bases morais da vida social e privada, a crise dos valores da família e a perseguição e discriminação contra os cristãos no mundo”.

O longamente ansiado encontro entre um Papa e o Patriarca de Moscou finalmente aconteceu em fevereiro de 2016, quando Francisco e Kirill se reuniram em Havana durante a viagem apostólica do Papa a Cuba e ao México.




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A tensa relação entre ortodoxos russos e ucranianos

Existem – ao menos até aqui – três grandes Igrejas Ortodoxas na Ucrânia.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou esteve sob a jurisdição russa desde 1686, por decisão do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla.

A Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana é uma dissidência surgida em 1921, reinstalada em 1990 após a queda do comunismo soviético e liderada hoje pelo metropolita Macarius.

Por fim, a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev é outra dissidência, fundada em 1992 e hoje liderada pelo patriarca Filaret.

A decisão tomada neste mês pelo Patriarca Ecumênico Bartolomeu, de Constantinopla, reabilitou Filaret, Macarius e os fiéis das suas Igrejas, que estavam excomungados. Os dois grupos voltaram, assim, à plena comunhão com o Patriarcado Ecumênico.

Juntas, essas duas Igrejas têm cerca de 14,5 milhões de fiéis e, agora, devem unificar-se numa nova Igreja Ortodoxa autocéfala. Isto quer dizer que essa nova Igreja ortodoxa se torna totalmente independente do Patriarcado de Moscou e passa a ser reconhecida por toda a ortodoxia – com exceção do próprio Patriarcado de Moscou.

O atrito entre as Igrejas da Rússia e da Ucrânia tem natureza política.

O presidente russo Vladimir Putin enxerga no Patriarcado de Moscou um importante braço da sua influência sobre a Ucrânia, país com o qual a Rússia está em guerra. A ocupação da Crimeia pela Rússia em 2014 piorou a já difícil relação entre os países. Putin também vê na Igreja Ortodoxa Russa um fator crucial para a hegemonia cultural da Rússia no Leste Europeu – e o patriarca Kirill é visto internacionalmente como um importante aliado do mandatário.

Moscow cathedral
Коля Саныч

Por outro lado, o presidente ucraniano Petro Poroshenko fomenta por motivos óbvios a independência da Igreja ortodoxa em seu país. Ele próprio encaminhou ao patriarca Bartolomeu, em abril, o pedido de autonomia. Em agosto, Bartolomeu informou a Kirill sobre a iminência da autocefalia a ser concedida à Ucrânia, o que levou a Igreja Ortodoxa Russa a não mais mencionar o nome do patriarca ecumênico durante a liturgia.

Na segunda semana de outubro, Bartolomeu reuniu o sínodo de sua Igreja e reiterou a decisão de conceder a autocefalia aos ucranianos, o que, para os russos, é particularmente difícil de aceitar porque o próprio berço do cristianismo russo é Kiev, a capital da Ucrânia moderna.

Por enquanto, o novo cisma é a nova realidade das relações entre essas Igrejas e povos irmãos.




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