Mas grande parte da imprensa optou por “noticiar” a sua própria e enviesada versão das palavras do Papa e, principalmente, do seu contextoNa primeira audiência geral de 2019, nesta quarta-feira, 2 de janeiro, o Papa Francisco disse:
“Quantas vezes vemos o escândalo criado por aquelas pessoas que vão à igreja e ficam lá todo o dia, ou vão lá todos os dias, e depois vivem com ódio dos outros ou falando mal das pessoas. Isto é um escândalo! É melhor não ir à igreja: vive assim, como ateu. Mas, se você vai à igreja, vive como filho, como irmão, e dá um verdadeiro testemunho, não um contratestemunho”.
Veículos de comunicação, no entanto, deram a entender que, “segundo o Papa Francisco, é melhor ser ateu do que ser católico e falar mal dos outros”.
Francisco não fez comparação nenhuma entre ateus e católicos como tais, mas, em todo caso, entre dois comportamentos que negam a Deus na prática (e, portanto, são em si mesmos distantes da postura a que ele convida os católicos sinceros e que é a verdadeira exortação apresentada em seu discurso: viver como filhos de Deus e como irmãos entre si).
O assunto abordado pelo Papa nesse momento da sua catequese são as pessoas que se acham católicas porque vão à igreja com grande assiduidade, mas que, habitualmente, cometem os pecados venenosos da língua. Essas pessoas geram escândalo e transmitem o contrário do verdadeiro testemunho católico. Neste caso, e especificamente neste caso, o Papa observa, pelo contexto da sua catequese e pelo conjunto das suas afirmações, que seria melhor se tais pessoas mudassem de postura e vencessem a incoerência, mas, se não estiverem dispostas a isto, então seria menos escandaloso que elas parassem de fingir que são católicas e se assumissem como indivíduos que, na prática, negam a Deus, dado que já vivem em aberta incoerência com o mínimo que Deus nos pede.
Trata-se de uma evidente crítica a um comportamento pontual de católicos incoerentes e não de uma comparação “qualitativa” entre católicos e ateus – até porque há linguarudos e mexeriqueiros também entre estes, como os há em todo e qualquer grupo humano genérico.
Se alguém quiser insistir em interpretar as palavras do Papa como uma “comparação prática” entre crenças, deverá em todo caso reconhecer que ela se restringe exclusivamente ao conjunto das pessoas que negam a Deus, comparando, então sim, aqueles que o fazem assumidamente por convicção ideológica e aqueles que o fazem mediante a contradição entre a sua suposta condição cristã e as suas reais atitudes anticristãs: afinal, o que o Papa condena é justamente a postura de quem não vive em coerência com a própria condição de filho de Deus e irmão de todos os homens. Não há nessa fala uma comparação técnica entre religiões ou crenças pessoais como tais, mas uma crítica direta a comportamentos de pessoas que, na prática, afastam Deus da sua vida mediante posturas incompatíveis com Ele. Quanto ao ateísmo entendido como crença pessoal, ele sequer fez parte do contexto. Aliás, respeita-se a opção de quem escolhe, num gesto de fé, acreditar na inexistência de Deus – mas as palavras de Francisco não tocaram nesse tema especificamente nem colocaram esta opção como parte do convite aos católicos sob nenhum ponto de vista intelectualmente honesto em momento algum da catequese.
Há pessoas que, diante de um convite ao exame de consciência, o acolhem, o aplicam a si mesmas e procuram melhorar os seus comportamentos. E há pessoas que preferem apontar o dedo para qualquer ponto, menos para a própria consciência, e, de quebra, descontextualizando até o assunto a ser examinado. Questão de livre arbítrio – e, mais profundamente, de maturidade.