Em nossa cultura, pode ser difícil encontrar a linha limítrofe entre fechar-se ou abrir-se demais
Santo Agostinho escreveu o que talvez seja a primeira autobiografia da literatura ocidental. Suas Confissões traçam uma longa jornada interior, desde a juventude “playboy” até o filósofo católico. Ali, ele compartilha detalhes íntimos sobre seus pecados passados, escolhas de vida horríveis e culpa.
Ele relata conversas íntimas com sua mãe e como ele lidou com a morte dela, lembra de amigos com quem brincou quando menino, e dá lugar a todo tipo de reflexões abstratas sobre a natureza do tempo e as motivações do que fazemos.
Seu nível de honestidade e vulnerabilidade deve ter chocado seus primeiros leitores. Naquela época, a literatura não revelava emoções e diálogos internos, de modo que esse novo estilo de escrita confessional pode ter impressionado os leitores – algo que poderíamos chamar hoje de “oversharing” (compartilhamento excessivo).
Mas Agostinho não estava exagerando. Ele não tirou fotos de todas as suas refeições para publicar na internet; ele não comentou o quão decepcionado estava com alguma pessoa sem nome; e ele não atualizava seu trabalho constantemente em postagens.
Apesar de Agostinho entrar em detalhes íntimos sobre sua vida, tudo se resume a uma literatura poética e temática. Ele cuidadosamente orienta seus leitores através de sua história de vida, na esperança de que aprendamos com seus erros e desenvolvamos admiração pelas circunstâncias miraculosas que influenciam toda vida humana.
O uso de escrita em estilo confessional explodiu. Todos nós provavelmente já fizemos isso. Indo à mídia social para compartilhar detalhes escandalosamente íntimos sobre nós mesmos e revelando demais, oferecemos informações mal concebidas que não têm a nuance nem o propósito do confessionalismo de Agostinho.
Nós agora falamos por falar. Nossa cultura está saturada disso. Pretensas celebridades estão convencidas de aparecer na televisão e espalhar detalhes embaraçosos sobre si mesmas para milhões de estranhos. Nada está oculto, nada é privado, nada é sagrado.
Aqui estão algumas lições de Santo Agostinho sobre como encontrar o limite entre a vulnerabilidade honesta e o compartilhamento excessivo.
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VULNERABILIDADE NÃO É UMA ARMA
Há momentos em que compartilhamos algo horrível sobre nós mesmos, não por humildade, mas sim porque ansiamos por atenção. A vulnerabilidade se torna uma arma que usamos. É um tipo estranho de apego ao poder, uma maneira de controlar um relacionamento. Quando Santo Agostinho compartilha suas vulnerabilidades, ele o faz para não se apresentar como vítima, mas para ilustrar até onde Deus o trouxe. Ele encoraja aqueles que se sentem perdidos, sem esperança e culpados a ver que a vida pode se transformar através da graça, da oração e da reparação. Quando decidimos revelar uma falha seriamente embaraçosa em relação a nós mesmos, podemos primeiro perguntar qual é o nosso propósito – é para consolar um amigo? Para mostrar solidariedade? Para corrigir um erro do passado? Se sim, compartilhe.
2
NÃO USE O OVERSHARING COMO UM VÍCIO
Em um estado altamente emocional, o oversharing pode ser usado para um acesso rápido a substâncias químicas calmantes do cérebro, relacionadas à dopamina. Por causa disso, uma comunicação particularmente confessional fornece uma sensação de bem-estar, especialmente se recebe uma resposta significativa. Nossos cérebros anseiam por prazer também através das interações digitais. Eu suspeito que um resultado semelhante ocorra frente a frente. Há uma onda de alívio em dizer algo totalmente embaraçoso porque causa uma reação diferente nas pessoas à nossa volta. Não estou dizendo que há algo errado com a vulnerabilidade, mas devemos tomar cuidado para que não façamos isso apenas pela sensação rápida que parece vir junto. Uma onda de bem-estar quimicamente induzida não significa que tudo está de repente bem. Santo Agostinho compartilha o fato de não se sentir melhor sobre si mesmo, mas de nos encorajar a fazer uma reflexão séria sobre o nosso eu interior. Este é o trabalho árduo que vem após o compartilhamento, e é o que cria uma reconciliação verdadeira e duradoura com nossas falhas e fornece a base para uma mudança duradoura.
3
O OVERSHARING NÃO SUBSTITUI UMA CONFISSÃO GENUÍNA
Expressar publicamente um segredo obscuro não resolve os problemas subjacentes. Pode ser um primeiro passo, mas há muito mais em relação a uma confissão genuinamente saudável. Particularmente quando se está lutando com culpa, somente uma verdadeira confissão servirá – uma desculpa direta com uma oferta de reparação, e a confissão sacramental para receber o perdão de Deus. Todos os tipos sinceros de confissão criam vínculos duradouros e devem ter acompanhamento. Santo Agostinho escreveu suas confissões para descrever como lidar com seus problemas criou motivação para mudar sua vida. Ele quer ajudar seus leitores a fazer o mesmo. Devemos ter um motivo igualmente nobre.
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4 NÃO USE OVERSHARING COMO UMA SAÍDA FÁCIL
Somos rápidos em admitir detalhes embaraçosos sobre nós mesmos, mas demorados em fazer algo em relação ao problema. Na verdade, o oposto geralmente acontece. Se alguém sugere que o conteúdo da confissão seja a base para uma melhora de comportamento, esse alguém é acusado de moralismo. Mesmo que o confessor admita que a falha é uma falha, admitir que isso não isenta da culpa. Eu ir às redes sociais e falar sobre como eu sou arrogante e como me sinto mal com isso não significa que, porque eu fui honesto sobre isso, eu possa agora continuar sendo arrogante. Não é isso que Santo Agostinho faz. Quando ele admite a furto, por exemplo, ele faz isso para apontar que suas ações eram inaceitáveis e sua tristeza sobre isso levou a grandes mudanças na vida.
Então, o que há de bom na cultura confessional? Bem, honestidade, humildade e vulnerabilidade são virtudes de que todos podemos nos beneficiar praticando. O exemplo de Santo Agostinho mostra que há valor real em ser aberto e honesto. O que ele também nos mostra, porém, é que uma confissão pública não é um substituto para o árduo trabalho de exame da consciência e luta pelo progresso espiritual. Uma confissão genuína sempre tem acompanhamento, sempre tem propósito e é o primeiro passo de uma jornada rumo à paz.