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Confinamento da população, coronavírus, paralisação da economia e doutrina social da Igreja

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Yuliya Evstratenko | Shutterstock

Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 29/03/20

É impressionante a contribuição que a doutrina social da Igreja pode nos dar diante dessa situação

Nas últimas semanas, o maior debate no Brasil (e, provavelmente, no mundo) foi sobre como evitar a expansão da Covid-19. Em resumo, as posições variam entre a proposição de um confinamento imediato e abrangente da população, com a paralização de todos os serviços não-essenciais, defendido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela maioria das entidades médicas e parte dos governos do mundo; e os que propõem o isolamento dos grupos de risco e contaminadas, que traria menor impacto sobre a atividade econômica, defendida por outros governos e uma parcela menor dos especialistas.

Diante dos perigos tanto da pandemia quanto da recessão econômica prolongada, encontrar a melhor solução depende de informações científicas e análises da evolução do coronavírus numa série de cenários. Não se trata de “achismos”, posicionamentos ideológicos ou reflexões filosóficas e teológicas. Contudo, é impressionante a contribuição que a doutrina social da Igreja pode nos dar diante dessa situação.

A sabedoria cristã não é apenas fruto da revelação, que nos ensina fundamentalmente que Deus é amor e nos ama, mas também da reflexão acumulada ao longo da história por pensadores e líderes preocupados com o bem comum e com o seguimento dos ensinamentos de Jesus. Assim, incorpora uma série de elementos que não dão soluções a questões como a forma de conter a expansão da Covid-19, mas nos ajudam a assumir a melhor posição para encontrar a resposta certa a essas perguntas.

Na dúvida, buscar um olhar integral, agir com precaução e em diálogo com todos

Nas questões tecno-científicas, o critério da maioria nem sempre é adequado. Quando são lançadas novas teorias ou tecnologias mais avançadas, é comum não contarem com a aprovação da maioria, mas com o tempo vão se firmando. Nessa polêmica sobre a melhor forma de contenção da pandemia global, temos que nos orientar por um discernimento bem informado sobre a questão.

O Papa Francisco, na Laudato si’ (LS) escreve: “Há necessidade duma atenção constante, que tenha em consideração todos os aspectos éticos implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a informação disponível […] É necessário dispor de espaços de debate, onde todos aqueles que poderiam de algum modo ver-se, direta ou indiretamente, afetados […] tenham possibilidade de expor as suas problemáticas ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para adotar decisões tendentes ao bem comum presente e futuro” (LS 135). Portanto, nada de ouvir só aqueles com os quais concordamos, menosprezar ou denegrir os que pensam diferente. Os que têm pouca voz, os mais frágeis e vulneráveis na sociedade, precisam ser ouvidos com redobrada atenção. Temos que procurar o diálogo com todos, procurando entender todos os aspectos do problema.

Na mesma linha da Laudato si’, exposta acima, o Compêndio de Doutrina Social da Igreja (CDSI 469) lembra que quando falta embasamento cientifico ou quando os especialistas não concordam quanto às melhores ações a serem tomadas, deve-se agir com precaução, pesando tanto os danos quanto os benefícios de cada alternativa, procurando evitar riscos que podem ser evitados.

Na prática, devemos perguntar aos defensores de uma ampla paralização da vida social: o que fazer para minimizar o sofrimento dos mais pobres e dos que contam com a renda diária para sobreviver? Se optamos por essa solução, temos que pensar uma alternativa para a sobrevivência dessas pessoas (e junto com elas, não em escritórios confortáveis de quem não conhece essas dificuldades). Aos defensores do isolamento dos grupos de risco e dos portadores: como faremos isso se não temos condições de identificar todos os portadores, pois faltam kits de teste, ou como isolar idosos em favelas e bairros populares, onde a interação entre as pessoas é muito grande?

Subsidiariedade: liberdade com responsabilidade e cooperação

O confinamento é uma imposição contrária à liberdade individual ou uma prerrogativa dos governos numa situação de crise? O magistério da Igreja enfrenta essa questão com o princípio da subsidiariedade (ver CDSI 185ss): o Estado deve apoiar e auxiliar (subsidiar) as iniciativas das pessoas na vida social, sem tentar controlá-las, mas incentivando o seu protagonismo; as instâncias estatais superiores devem apoiar as inferiores, também sem tentar controlá-las (o governo federal apoia os estaduais, esses apoiam os municipais). A coordenação e a tomada de decisões que não podem ser assumidas pela pessoa individualmente são funções de um Estado subsidiário e não representam obrigatoriamente uma imposição social.

O problema ocorre quando a decisão governamental vem mal informada, contrariando o bem comum, ou não é bem apresentada à população. Outra dificuldade se dá quando o governo tenta uniformizar decisões e políticas, sem olhar as particularidades de cada região ou grupo social. Os impactos de um confinamento imposto pelo coronavírus, seja ele qual for, serão muito diferentes num bairro rico ou numa favela, os donos de restaurantes sofrerão de forma diferente dos donos de carrinhos de comida de rua, a forma como a sociedade reagirá numa grande cidade será muito diferente daquela do interior do País. Uma postura subsidiária implica em dar voz para todas essas realidades, de modo que a coordenação as considere e procure minimizar as dificuldades específicas de cada uma.

A liberdade é um grande valor social, mas não pode ser separada da responsabilidade de cada um para com a sua vida e a da coletividade (cf. CDSI 138-139). Somos responsáveis uns pelos outros e a ação do Estado torna-se tanto mais coercitiva quanto menos estamos dispostos a colaborar com o bem comum (sempre no caso em que a decisão estatal é aquela mais adequada para o bem comum, evidentemente). Nesse momento, por exemplo, vemos que a maior parte da população brasileira está consciente da magnitude da ameaça do coronavírus, assim o debate está sendo sobre a melhor forma de controlá-lo, mais do que sobre uma possível ingerência do Estado na liberdade individual.

O caminho da solidariedade

A discussão sobre o tipo e o grau de isolamento a ser instalado no Brasil não elimina a constatação de que muitas pessoas morrerão (já estão morrendo) e que a pandemia trará redução da atividade econômica e dificuldades financeiras para a população. A discussão é sobre a melhor forma de minimizar esses sofrimentos, não de evitá-los.

Quando o mundo ainda lutava para sair da grande crise econômica de 2008, Bento XVI escreveu a encíclica Caritas in veritate justamente para dizer que o caminho da superação da crise passava pela solidariedade internacional e no interior de cada país (ver Capítulos III e V). Se cada um procurar apenas o seu bem, o sistema como um todo entrará em colapso e o bem individual se tornará ainda mais difícil de ser alcançado. Se todos se ajudam, o sistema não entra em colapso ou é reconstruído com mais facilidade, trazendo bem para todos.

Agora, diante da crise da Covid-19, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne os países mais ricos do mundo), indo na mesma direção das indicações de Bento XVI, publicou um documento no qual alerta para as consequências da pandemia, que poderão ser maiores ou menores, mas são inevitáveis, e propõe que a cooperação internacional e a solidariedade são os únicos caminhos viáveis para diminuir os danos à economia das nações e às condições de vida das populações.

A grande pergunta, para superar os efeitos da pandemia sobre a economia, não é como não parar a produção, mas como nos ajudarmos a superar juntos os problemas econômicos que estamos enfrentando e iremos enfrentar no futuro próximo. Felizmente, muitas pessoas e governos estão assumindo essa postura, que será válida opte-se pelo confinamento geral, opte-se pelo isolamento dos grupos de risco e dos contaminados.

Em conclusão

Como vimos no início, não cabe à doutrina social da Igreja dar uma resposta à questão técnica do confinamento da população. Contudo, ela apresenta uma postura humana adequada para o enfrentamento do problema. Se o tema é polêmico, temos que escutar todas as vozes, procurar entender todos os seus aspectos, dialogar e agir com precaução, evitando riscos desproporcionais. Se existe necessidade de medidas duras, quanto maior o espírito de cooperação e de busca pelo bem comum, menor será a coerção à liberdade individual. Para superar tanto a ameaça epidemiológica quanto as dificuldades econômicas, a solidariedade é a melhor solução. Se procurarmos discernir dessa forma, com certeza iremos agir com sabedoria nesse momento. 

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