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Como faço para meu vizinho idoso não sair de casa?

STARSZY MĘŻCZYZNA

Giannis Papanikos | Shutterstock

Octavio Messias - publicado em 08/04/20

Quarentena serviu de mote para nos aproximarmos

Como moro sozinho e estou isolado há mais de três semanas, a única pessoa com quem tenho conversado pessoalmente é o senhor Zequinha, que mora na parede de lá da casa germinada onde vivo, em São Paulo. O mesmo Zequinha que na correria do dia a dia eu acabava mal tendo tempo de cumprimentar. E ele sempre solícito, na varanda à frente de sua casa, acompanhando o movimento da praça que fica em frente, para qualquer passante que quiser prosear.

A única vez em que conversei de verdade com Zequinha foi no dia em que me mudei, há quase dois anos. Naquele fim de tarde conversei longamente do lado de cá do muro com ele e com sua esposa, dona Ofélia, também sempre muito simpática mas que, de um ano para cá, tem aparecido cada vez menos na varanda, acredito que por questão de saúde.

Naquela noite, ela me contou que mudou para aquela casa ainda na adolescência, com seus pais. Todos os sobrados da praça e muitos ao redor faziam parte de uma grande vila operária, construída para abrigar trabalhadores e suas famílias nos anos 1950. Ela tinha saído de casa para se casar, porém voltou depois que eles faleceram. Ofélia e Zequinha criaram seus filhos, hoje já bem mais velhos do que eu, naquela praça para a qual ele ainda tanto olha, talvez na expectativa de ser acometido por uma nova lembrança do passado. 

Logo que a pandemia chegou ao país, ciente de que idosos, especialmente octogenários como Ofélia e Zequinha, compunham o grupo de risco, conversei com ele na primeira oportunidade. Do lado de cá do baixo muro que separa nossas varandas, averiguei se tinha consciência de que precisava se isolar. Para meu alívio, ele tinha. “É como na gripe espanhola, em que os carros funerários batiam na porta das casa para perguntar se tinha algum cadáver”, comparou. E naquela tarde, pela primeira vez, Zequinha me pareceu preocupado. “Acho que chegou a hora da minha geração”, desabafou. Tentei acalmá-lo, disse que eles podiam contar comigo para o que precisassem e que era só eles se cuidarem que teriam mais esse capítulo da história no currículo. 

Desde então nossa relação se tornou mais empática. Pelo menos até hoje de manhã, quando o flagrei tirando compras do carro e levando as sacolas para o interior da casa. Muito tem me intrigado esse fenômeno da quarentena, em que os idosos são mais vistos circulando por aí do que os jovens. 

Aproximei-me com um início de bronca, mas ele logo me desarmou, de tão genuína sua justificativa. Ele me contou que seus filhos tinham levado compras para eles no domingo, mas hoje a Ofélia estava animada e queria fazer lasanha, sua especialidade, só que eles não tinham todos os ingredientes na dispensa, então ele foi ao mercado e aproveitou para comprar outras coisas. Antes de me despedir, pedi que ele evitasse sair e que me avisasse quando precisasse de alguma coisa do mercado. Mas, pela forma educada com que me respondeu, percebi que ele não tinha a menor intenção de me pedir isso.

Agora, pensando bem, consigo entender que, quando peço que ele se isole, estou pedindo que ele deixe a Dona Ofélia na mão quando ela acordar disposta a fazer lasanha e que assim abra mão, não só de deliciar-se com o prato, mas de sua autonomia e do seu papel de provedor. Peço que fique totalmente dependente dos filhos, que “até outro dia”, como ele mesmo se refere, estavam brincando naquela praça ali diante de nós. 

Entendo também que as mudanças têm sido bruscas e que deve ser difícil para alguém da idade dele assimilar tantas mudanças em tão pouco tempo. Deve ser difícil conceber a ideia de uma ameaça microscópica de alcance global. Deve ser difícil ficar trancado em casa, quando a rua, o que sempre entendeu como termômetro da realidade, perdeu tanta credibilidade mediante as informações instantâneas que pipocam nos meios digitais. Deve ser difícil ficar parado, como ele mesmo me disse, quando sua geração está chegando ao fim.

Só espero que tão cedo não faltem ingredientes para sua lasanha, que suas saidinhas se tornem cada vez mais raras e que o vírus não chegue nem perto de Ofélia e Zequinha. Pois sinto que, mesmo em isolamento, eu fiz um amigo. E quero encontrá-lo muito mais vezes na varanda disposto a conversar. 

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