Que a cada ano, comemoremos o Domingo da Misericórdia mais alegres e confiantes na vitória de Cristo sobre o mal do mundoO domingo seguinte ao da Páscoa é uma data importante no calendário litúrgico. Era chamado Domingo in Albis, no qual os recém-batizados deixavam as vestes brancas que usaram na Vigilia Pascal. São João Paulo II instituiu, para essa data, o Domingo da Misericórdia. Ainda pouco comemorada entre nós, essa é uma celebração importantíssima para a Igreja Católica nos tempos atuais, pois a experiência da misericórdia é a resposta mais completa que podemos encontrar para o escândalo do mal. Não por acaso, portanto, ela é um dos grandes pontos em comum dos magistérios de São João Paulo II, com a encíclica Dives in Misericordia, e do papa Francisco, que promulgou o Jubileu da Misericórdia e escreveu a Bula Misericordiae Vultus. Quem quiser conhecer mais sobre o tema, pode ler os artigos de Marcelo Cypriano Mota.
A mentalidade contemporânea se acostumou a não olhar para o mal. O escondemos só contemplando celebridades e pessoas de sucesso, comemorando e nos deixando fotografar nas redes sociais como se a vida fosse sempre uma festa, tornando socialmente invisíveis os pobres e os que sofrem, esquecendo a velhice e a doença, dividindo o mundo entre os bons (nós) e os maus (aqueles que pensam diferente de nós ou que caíram em graves erros). Contudo, catástrofes naturais ou provocadas por falhas humanas, crimes escabrosos, pandemias e nossos sofrimentos cotidianos acabam nos obrigando a enfrentar novamente o mal. Nesses momentos, o horizonte se alarga e a dor ganha sentido se nos lembramos da experiência da misericórdia – que não é apenas um sentimento ou um conceito piedoso, mas um fato que invade nossa vida e quebra nossos limites humanos.
Em 2020, no meio dessa dramática pandemia, a Via Sacra celebrada pelo Papa Francisco foi um presente de Deus que nos permite entrar de modo privilegiado no âmago dessa experiência da misericórdia (vídeo). As meditações de cada estação são depoimentos de presos num cárcere de segurança máxima da Itália e de pessoas vinculadas a essa realidade (os pais de uma adolescente assassinada, um juiz, funcionários e voluntários que trabalham na prisão). No conjunto, mostram a espessura e o peso da ação do mal no coração humano, mas, acima dele, sobressai o amor e a ternura que Deus reserva para nós, seres tão frágeis, tão suscetíveis ao pecado e à dor.
Antes que algum preconceito ou juízo ideológico nos faça perder esse tesouro, devo dizer que nas meditações não existe nenhuma tendência de vitimização dos presos ou de análise sociologizante de seus crimes (que, aliás, nem são citados). Eles próprios deixam claro que se reconhecem como culpados e narram sua experiência não para se mostrarem como vítimas, mas para testemunharem as graças recebidas. G.K. Chesterton, talvez o maior apologista católico do século XX, criou um sacerdote detetive fictício, o padre Brown. Interrogado sobre a forma como sempre desvenda os crimes, Brown diz que se colocava no lugar do criminoso, pois até mesmo ele – saudado por todos como modelo de bondade e retidão – poderia cometer os crimes mais hediondos, pois o ser humano é contraditório, sempre capaz tanto do bem quanto do mal.
Contemplando a Via Sacra proposta pelo Papa Francisco com esses olhos, percebemos que aqueles criminosos deixam de ser apenas exemplos das maldades das quais as pessoas são capazes, para se tornarem testemunhas de um Amor maior que todo o mal, nos mostrando que a misericórdia de Deus pode fazer nascer um bem maior a partir de qualquer mal humano.
Que a cada ano, comemoremos o Domingo da Misericórdia mais alegres e confiantes na vitória de Cristo sobre o mal do mundo e mais certos do destino bom que Ele nos reserva, independentemente dos sofrimentos – grandes ou pequenos – do presente.