A Igreja reconhece um processo evolutivo desde Santo Agostinho, que o sugeriu mais de 1000 anos antes de Darwin
Meios de comunicação de dezenas de países divulgaram nesta semana o “reencontro da ovelha perdida” – não a parábola de Jesus, mas, literalmente, o reaparecimento de uma ovelha australiana que tinha se perdido do rebanho durante incêndios florestais ocorridos na Tasmânia em 2013. Na ocasião, a fazenda da família Gray foi atingida pelas chamas e alguns animais fugiram.
Sete anos depois, a família relatou que “um bicho enorme e redondo” apareceu nas filmagens de uma câmera de segurança da propriedade. Era uma das ovelhas desgarradas, com tamanho tão grande pelo acúmulo de lã que chegava a equivaler ao de cinco ovelhas tosadas. A sujeira e os espinhos acumulados ao longo de sete anos renderam à ovelha o nome “Prickles”, que significa “espinhos” em inglês.
Não é a primeira vez que, para espanto internacional, ressurge qual filho pródigo um ovino sobrevivente a anos de isolamento no interior da Austrália. Em 2015, também atraiu atenções a tosa do carneiro Chris, que tinha acumulado nada menos que 40 quilos de lã: um recorde mundial. Como a lã de um carneiro não tosado rende cerca de 5 quilos por ano, estimou-se que ele havia sobrevivido em ambiente selvagem durante mais de 8 anos, apesar dos parasitas e das conseguintes infecções e lesões na pele.
Por que esses dois casos despertaram atenção científica internacional?
Basicamente, por causa da necessidade de ajuda humana para retirar a lã de ambos os animais. Chris e Prickles nos recordam o quanto a sobrevivência da sua espécie se tornou dependente da espécie humana ao longo da história.
Os carneiros foram domesticados há cerca de 11.000 anos, na Mesopotâmia, e passaram a sofrer a chamada “seleção artificial”: são os homens que escolhem as características dos animais e das plantas que cultivam, e não mais a natureza. Este conceito foi criado pelo naturalista britânico Charles Darwin, famoso pela teoria da evolução biológica, e se aplica ao processo evolutivo de outros animais domesticados, como as galinhas, os gatos e os cachorros. Trata-se de animais “moldados” pela humanidade a tal ponto que eles se tornam dependentes do cuidado humano. Foi por isso que, ao ficarem perdidos durante tanto tempo, a lã de Chris e de Prickles cresceu indefinidamente, sem que a natureza “desse um jeito” na situação.
A Igreja e a evolução
Assim como volta e meia reaparecem ovelhas perdidas mundo afora, também ressurge, volta e meia, o desonesto barulho da mídia em torno à visão da Igreja Católica sobre a teoria da evolução.
No mesmo 2015 em que o carneiro Chris foi “resgatado da perdição”, gerou celeuma no planeta a declaração do Papa Francisco de que a teoria da evolução é compatível com a fé cristã. Jornais, TVs e sites fizeram alarde anunciando que, “finalmente”, o Papa “reconhecia a evolução das espécies”.
Para variar, faltava evolução à mídia, que estava atrasada vários e vários séculos.
A Igreja reconhece a existência de um processo evolutivo desde Santo Agostinho, que o sugeriu já no século V d.C. – mais de mil anos antes que Darwin o propusesse.
O que marca a grande diferença entre a Igreja e Darwin não é o fato de que as espécies evoluam, e sim o sentido dessa evolução.
O darwinismo afirma que a evolução acontece mediante a sobrevivência de variações genéticas aleatórias, sem nenhum propósito e sem nenhuma orientação. Já a Igreja sustenta que em toda a natureza existe uma lógica de fundo, um desígnio inteligente, um propósito. E não apenas na evolução biológica, mas na própria estrutura do universo, que segue leis físicas, químicas e matemáticas observáveis e inegáveis.
O mundo laico, no entanto, considera que a Igreja Católica “não enxerga o xis da questão” no tocante à biologia moderna e conclui que a evolução e a criação não podem ser compatíveis. Ateus e fundamentalistas concluem erroneamente que “o cristão escolhe a crença em detrimento da biologia”: para o ateu, isto é motivo de repúdio ao cristianismo; para o fundamentalista, é motivo para repudiar a biologia moderna.
Acontece que quem “não enxerga o xis da questão” não é a Igreja, mas sim os ateus e os fundamentalistas.
Da perspectiva católica, o problema não é que Darwin tenha se livrado do conceito de desígnio na natureza: o problema é que as pessoas começaram a acreditar que o desígnio “vai ou racha” com a ciência natural. A suposição de que a evolução biológica não tem nenhum propósito ou desígnio não entra em conflito com a teologia, porque é uma resposta a uma questão científica, não teológica. Tomás de Aquino enfatizou, muito antes da Revolução Científica: a ciência natural e a teologia não são corpos de conhecimento concorrentes; são formas distintas e complementares de investigação da realidade.
Aristóteles e seus 4 tipos de causa
“Qual é a causa da existência da cadeira?“. Segundo o filósofo grego Aristóteles, que viveu há 2.500 anos, esta pergunta pode ser interpretada de quatro maneiras diferentes.
1 – Se entendemos que a causa da existência da cadeira é o fato de que alguém a produziu, estamos falando da “causa eficiente”:
A causa da existência da cadeira é José, que a construiu. José é a causa eficiente da cadeira.
2 – Se entendemos que a causa da existência da cadeira é a finalidade de nos sentarmos nela, estamos falando da “causa final”:
A causa da existência da cadeira é que precisamos dela para nos sentarmos. Sentar-se é a causa final da cadeira.
3 – Se entendemos que a causa da existência da cadeira é a madeira da qual ela é feita, estamos falando da sua “causa material”:
A causa da existência da cadeira é a sua matéria-prima. A madeira, neste caso, é a causa material da cadeira.
4 – E se entendemos que a causa da existência da cadeira é justamente o fato de que ela é uma cadeira e não uma garrafa, estamos falando da “causa formal”:
A causa da existência de uma cadeira é a sua própria natureza de cadeira, é o fato de ser uma cadeira e não uma garrafa ou outra coisa qualquer. O fato de ser especificamente uma cadeira e não outra coisa é a causa formal da existência da cadeira.
Cada uma dessas quatro interpretações equivale a perguntar “Qual é a causa da existência da cadeira?“, só que a partir de quatro perspectivas diferentes; a partir da consideração de quatro tipos diferentes de “causa” para essa existência.
Em grego antigo, a palavra “causa” (aitía) tem um sentido de “razão”: a razão pela qual. Confundir os diferentes tipos de causa ou razão de existência gera absurdos: quando alguém pergunta “Quem fez a cadeira?“, não faz sentido responder “Para sentar-se“. Cada abordagem sobre a causa de algo pede uma resposta delimitada por essa mesma abordagem. Para que obtenhamos uma explicação completa sobre a causa de algo, pensava Aristóteles, precisamos envolver as quatro perguntas e as suas respectivas quatro respostas.
A rejeição da causa formal
Hoje em dia, tende-se a rejeitar no âmbito da ciência moderna a validade das quatro causas aristotélicas.
Já no início do período moderno, pouco mais de 500 anos atrás, os filósofos Locke e Hume questionavam aquela que Aristóteles chamava de “causa formal”, que corresponde à natureza metafísica de algo. Eles achavam que a ciência moderna pode explicar de que uma coisa é feita e quais são as suas leis de governo sem precisar abordar a sua natureza metafísica.
A rejeição da causa final
Por sua vez, Galileu, Newton e outros cientistas dispensaram o “para quê?” nas questões da física, ou seja, deixaram de lado a “causa final”. Para eles, a ciência moderna é capaz de explicar o mundo físico em termos puramente “mecanicistas”, sem precisar de noções “não científicas” como “desígnio” ou “propósito”.
Mas muitos outros cientistas resistiram à intrusão da ciência moderna no território da biologia, onde aquela que Aristóteles chamava de “causa final” (“para quê?”) foi bem mais duradoura. Afinal, as “causas mecanicistas” não explicam os “para-quês” da natureza biológica.
Darwin, no entanto, começaria a tentar banir a causa final também do âmbito biológico. Para ele, a complexidade que pareceria indicar a existência de um Criador seria apenas o resultado de variações aleatórias durante um longo período de tempo.
A “resistência existencial” da causa final
Mas banir as “causas finais” das ciências físicas e biológicas não é bani-las de toda forma de explicação. As “causas finais” continuam prosperando no domínio metafísico.
Darwin só mostrou que a biologia, como diferente, por exemplo, da metafísica, da teologia ou da ética, pode dispensar as “causas finais” como a física o fez nos tempos de Newton. Isso deixa os biólogos dispensados de responderem a perguntas sobre a finalidade no tocante à existência das espécies, mas não proíbe a humanidade (nem poderia) de lidar com questionamentos essenciais e transcendentes sobre a causa final do próprio existir: para quê, no fim das contas, existe o que existe, quando poderia muito bem não existir nada? E muito mais pessoalmente (e crucial): para quê existo eu? Qual é o propósito do meu existir?
O problema, portanto, não é Darwin, e sim a ideia moderna de que a teologia só poderia discutir o que a ciência não consegue explicar. Ocorre que, se você professar a sua religião a partir das lacunas do conhecimento científico, você inevitavelmente se verá frustrado quando essas lacunas forem preenchidas, porque preencher lacunas científicas é justamente o que se espera do progresso da ciência. A religião pode (e consegue) fazer relevantes “provocações” à ciência no tocante às causas daquilo que existe, incentivando a parceria entre fé e razão para elevar mais integralmente o espírito humano à busca e à contemplação da verdade. A verdadeira religião não deve temer a ciência. Nem a verdadeira ciência deve temer a religião a ponto de negar a razoabilidade dos questionamentos que ela própria, a ciência, não consegue esclarecer.
Causas secundárias e causas primárias
Tomás de Aquino fez uma distinção de natureza entre as questões teológicas e natural-científicas.
Tanto a teologia quanto a biologia moderna perguntam: “Por que há seres humanos?“. Mas elas entendem a questão de forma diferente.
Para a biologia moderna, a pergunta significa: “Como e quando os seres humanos surgiram?” e “Quais são as partes constituintes dos seres humanos?“. As respostas para essas perguntas (“variações genéticas aleatórias ao longo do tempo” e “células e genes”) são o que Tomás de Aquino chamou de causas “secundárias”. São explicações de coisas na natureza que podem invocar leis probabilísticas, seleção natural ou as respostas que a teoria científica mais recente sugerir.
Mas a teologia pergunta por aquilo que Tomás de Aquino chama de causas “primárias”: “Qual é a fonte do ser?“, “Qual é o significado e a razão da criação?“. E nem os registros fósseis, nem a seleção natural respondem a estas questões. Elas não são as ferramentas adequadas para esta tarefa. Confundir questões teológicas e científicas é cometer um erro de categoria.
O conceito teológico de criação não é um conceito científico. O Deus da teologia católica não é, como Agostinho enfatizou, a ignição da existência, mas a sua causa em sentido não-temporal. Deus dá origem e sustenta a existência, inundando-a de sentido, tenha o homem vindo ou não do peixe, do macaco ou da poeira das estrelas, e sejam ou não probabilísticas as leis que regem essa evolução.
São os ideólogos contemporâneos do cientificismo os que “não enxergam o xis da questão” no tocante à evolução. A evolução não refuta Deus, assim como o eletromagnetismo não refuta a consciência moral. E o Papa Francisco não foi o primeiro a reconhecer isto, por mais que certas narrativas tenham tentado vender essa “notícia”.
A propósito: os casos de Chris e Prickles e seus muitos quilos de lã ajudam a reforçar o que o mesmo Papa nos recorda em sua encíclica Laudato Si’ a respeito da necessidade de tomarmos mais consciência do nosso papel no cuidado da casa comum. A natureza, por conta dos caminhos que nós trilhamos ao longo da nossa história como humanidade, passou a ter, em certo sentido, uma delicada “dependência” das nossas escolhas e ações. E não deveríamos precisar de carneiros e ovelhas perdidos na Austrália para reconhecer isso.
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