“O certo é que o poder e a bondade de Deus se fizeram visíveis para todos nós em João Paulo II. Num momento em que a Igreja sofre mais uma vez a aflição do mal, este é um sinal, para nós, de esperança e confiança”O Papa Emérito Bento XVI escreveu uma bela carta por ocasião dos 100 anos do nascimento de seu predecessor, o Papa São João Paulo II, com quem trabalhou durante muitos anos como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé: de 1981 a 2005, ano em que foi eleito seu sucessor.
A carta, escrita em alemão e datada de 4 de maio, foi enviada por Bento ao cardeal Stanislaw Dziwisz, que, durante 40 anos, foi o secretário pessoal do Papa polonês.
Reproduzimos a seguir, na íntegra, esta profunda e abrangente retrospectiva que o Papa Emérito nos oferece sobre a vida e as virtudes de São João Paulo II:
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Cidade do Vaticano
4 de maio do 2020
Neste 18 de maio, completam-se 100 anos desde que o Papa João Paulo II nasceu na pequena cidade polonesa de Wadowice.
A Polônia, dividida durante mais de 100 anos pelas três grandes potências vizinhas, Prússia, Rússia e Áustria, tinha recuperado a sua independência ao final da Primeira Guerra Mundial. Era uma época cheia de esperança, mas também de dificuldades, já que a pressão das potências Alemanha e Rússia continuava pesando sobre o Estado que se reorganizava. Naquela situação de angústia, mas principalmente de esperança, cresceu o jovem Karol Wojtyla, que perdeu muito cedo a sua mãe, seu irmão e, logo depois, o seu pai, de quem tinha aprendido uma piedade profunda e cálida. O jovem Karol era particularmente apaixonado pela literatura e pelo teatro, e, depois de estudar para os seus exames prévios à universidade, começou a se dedicar mais a estas matérias.
“Para evitar a deportação, no outono de 1940, ele começou a trabalhar em uma pedreira que pertencia à fábrica química Solvay” (cf. Dom e Mistério). “Em Cracóvia, ingressou clandestinamente no seminário. Enquanto trabalhava como operário em uma fábrica, começou a estudar teologia com livros antigos de texto, para poder ser ordenado sacerdote em 1º de novembro de 1946” (cf. Ibid.). É obvio, não só estudou teologia nos livros, mas também a partir da situação específica que pesava sobre ele e seu país. É uma espécie de característica de toda a sua vida e do seu trabalho. Estuda com livros, mas experimenta e sofre as questões que estão por trás do material impresso. Para ele, como jovem bispo – bispo auxiliar desde 1958, arcebispo de Cracóvia desde 1964 –, o Concílio Vaticano II se tornou uma escola para toda a sua vida e trabalho. As grandes perguntas que surgiram, especialmente sobre o chamado Esquema 13 – logo intitulado Constituição Gaudium et Spes – foram suas perguntas pessoais. As respostas desenvolvidas no Concílio lhe mostraram o caminho a ser seguido no seu trabalho como bispo e, depois, como Papa.
Quando o cardeal Wojtyla foi eleito sucessor de São Pedro em 16 de outubro de 1978, a Igreja estava em uma situação desesperada. As deliberações do Concílio se apresentavam ao público como uma disputa sobre a fé, o que parecia privar a própria fé da sua certeza indubitável e inviolável. Um pastor bávaro, por exemplo, comentando a situação, dizia: “No fim, acolhemos uma fé falsa”. Esta sensação de que não havia nada seguro, de que tudo estava em aberto, foi alimentada pela forma como se implementou a reforma litúrgica. Tudo, afinal, parecia factível na liturgia. Paulo VI tinha fechado o Concílio com energia e determinação, mas, uma vez terminado, ele se viu confrontado com mais assuntos, sempre mais urgentes, o que acabou colocando a própria Igreja em escrutínio. Os sociólogos compararam a situação da Igreja naquele momento com a da União Soviética sob Gorbachov, quando toda a poderosa estrutura do Estado se derrubou na tentativa de reformá-la.
Uma tarefa que superava as forças humanas esperava o novo Papa. Entretanto, desde o primeiro momento, João Paulo II despertou um novo entusiasmo por Cristo e pela Sua Igreja. Primeiro, ele o fez com o brado no sermão inicial do seu pontificado: “Não tenham medo! Abram, ou melhor, escancarem as portas para Cristo!”. Esse tom determinou todo o seu pontificado e o transformou num renovado libertador da Igreja. Isto se condicionava ao fato de que o novo Papa provinha de um país onde o Concílio tinha sido bem recebido: não se tratava do questionamento de tudo, mas da alegre renovação de tudo.
O Papa viajou o mundo em 104 grandes viagens pastorais e proclamou o Evangelho em toda parte como alegria, cumprindo assim a sua obrigação de defender o bem, de defender a Cristo.
Em 14 encíclicas, voltou a expor completamente a fé da Igreja e a sua doutrina humana. Inevitavelmente, ao fazê-lo, suscitou a oposição nas Igrejas do Ocidente cheias de dúvidas.
Hoje, parece-me importante enfatizar, sobretudo, o verdadeiro centro do qual deve emergir a mensagem dos seus diferentes textos. Este centro veio à atenção de todos nós no momento da sua morte. O Papa João Paulo II morreu nas primeiras horas da nova festa da Divina Misericórdia. Permitam-me aqui acrescentar um pequeno comentário pessoal, que revela um aspecto importante do ser e do agir do Papa.
Desde o começo, João Paulo II se sentiu profundamente comovido pela mensagem de Faustina Kowalska, uma freira da Cracóvia que destacou a Divina Misericórdia como centro essencial da fé cristã e que desejava uma celebração com esse motivo. Depois de todas as consultas, o Papa tinha escolhido o Domingo in Albis (Segundo Domingo de Páscoa). Entretanto, antes de tomar a decisão final, ele pediu da Congregação da Fé a sua opinião sobre a conveniência dessa data. Dissemos que não, pois pensávamos que uma data tão antiga e cheia de conteúdo como a do Domingo in Albis não deveria sobrecarregar-se com novas ideias. Certamente não foi fácil para o Santo Padre aceitar o nosso não. Mas ele o fez com toda a humildade e aceitou uma segunda vez o não da nossa parte. Finalmente, fez uma proposta que mantinha o histórico Domingo in Albis, mas incorporava a Divina Misericórdia em sua mensagem original. Impressionou-me em outras ocasiões a humildade deste grande Papa, que renunciava a ideias e desejos por não receber a aprovação dos organismos oficiais que, segundo as regras clássicas, ele devia consultar.
Quando João Paulo II vivia seus últimos momentos neste mundo, a Festa da Divina Misericórdia acabava de começar depois da oração das primeiras vésperas. Aquela celebração iluminou a hora da sua morte: a luz da misericórdia de Deus se apresenta como uma mensagem reconfortante sobre a sua morte. Em seu último livro, Memória e Identidade, publicado às véspera do seu falecimento, o Papa resumiu mais uma vez a mensagem da Divina Misericórdia. Destacou que a irmã Faustina morreu antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, mas que já tinha dado a resposta do Senhor a esse horror insuportável. Era como se Cristo quisesse dizer através de Faustina: “O mal não obterá a vitória final. O mistério pascal confirma que o bem prevalecerá, que a vida triunfará sobre a morte e que o amor triunfará sobre o ódio”.
Ao longo de sua vida, o Papa procurou apropriar-se em primeira pessoa do centro objetivo da fé cristã, que é a doutrina da salvação, e ajudar a outros a também apropriar-se dela. Através de Cristo ressuscitado, a misericórdia de Deus é dada a cada indivíduo. Embora este centro da existência cristã só nos seja revelado através da fé, também é importante filosoficamente, porque, se a misericórdia de Deus não é um fato real, então devemos encontrar o nosso caminho num mundo em que o poder último do bem contra o mal é incerto. No fim das contas, além deste significado histórico objetivo, é essencial que todos saibam que a misericórdia de Deus é mais forte que a nossa fraqueza. Além disso, nesta etapa atual, também podemos encontrar a unidade interior entre a mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do Papa Francisco: João Paulo II não é um rigorista moral, como alguns tentam retratá-lo. Com a centralidade da misericórdia divina, ele nos dá a oportunidade de aceitar os requisitos morais do homem, embora nunca possamos cumpri-los por completo. Entretanto, os nossos esforços morais são feitos à luz da Divina Misericórdia, que é uma força curativa para a nossa fragilidade.
Quando morreu o Papa João Paulo II, a Praça de São Pedro estava cheia de pessoas, especialmente jovens, que queriam estar junto do seu Papa pela última vez. Não posso esquecer o momento em que dom Sandri anunciou a partida do Papa. Em particular, o momento em que o grande sino de São Pedro repicou, tornando aquele anúncio inesquecível. No dia do funeral havia muitas frases dizendo “Santo súbito!”. Foi um grito que, de todo lado, surgia do encontro com João Paulo II. Não só na praça, mas também em vários círculos intelectuais, discutiu-se a ideia de dar a João Paulo II o título de “Magno”.
A palavra “santo” indica a esfera de Deus e a palavra “magno” a dimensão humana. Segundo as normas da Igreja, a santidade pode ser reconhecida mediante dois critérios: as virtudes heroicas e o milagre. Os dois critérios estão estreitamente vinculados. A expressão “virtude heroica” não significa uma espécie de façanha olímpica; significa, em vez disso, que em e através de uma pessoa revela-se algo que não provém dela; revela-se que a obra de Deus se faz visível nela e através dela. Não é uma competência moral da pessoa, mas sim a renúncia à própria grandeza. O ponto-chave é que a pessoa permite que Deus aja nela, e assim a obra e o poder de Deus se fazem visíveis através dela.
O mesmo se aplica à prova do milagre: tampouco ela é um evento sensacional, mas sim a revelação da bondade de Deus, que é Pai de uma forma que vai além das meras possibilidades humanas. O santo é um homem aberto a Deus e imbuído de Deus, que se afasta de si mesmo e nos permite ver e reconhecer a Deus, que é Santo. Verificar legalmente este fato, na medida do possível, é o significado dos dois processos de beatificação e canonização. Nos casos de João Paulo II, ambos os processos foram seguidos estritamente de acordo com as regras aplicáveis. Por isso, ele agora nos é apresentado como o pai que nos deixa ver a misericórdia e a bondade de Deus.
É mais difícil definir corretamente o termo “magno”. Durante os quase 2.000 anos de história do papado, o título “Magno” só foi outorgado a dois Papas: Leão I (440-461) e Gregório I (590-604). A palavra “magno” tem uma conotação política em ambos, na medida em que algo do mistério de Deus se fez visível também por meio da sua ação política. Mediante o diálogo, Leão Magno conseguiu convencer Átila, o príncipe dos hunos, a poupar Roma, a cidade dos príncipes dos apóstolos Pedro e Paulo. Desarmado, sem poder militar nem político, mas com o poder da convicção de sua fé, ele conseguiu convencer o temido tirano a poupar Roma. Na luta entre espírito e poder, o espírito demonstrou ser mais forte.
Embora Gregório I não tenha tido um êxito tão espetacular, também ele conseguiu proteger Roma contra os lombardos, contrapondo, de novo, o espírito ao poder e obtendo a vitória do espírito.
Se compararmos a história dos dois Papas com a de João Paulo II, a sua semelhança é evidente. João Paulo II também não tinha poder militar ou político. Durante as deliberações sobre a forma futura da Europa e da Alemanha, em fevereiro de 1945, observou-se que a opinião do Papa também deveria ser levada em conta. Então Stalin perguntou: “Quantas brigadas tem o Papa?”. É claro que o Papa não tinha exércitos ao seu dispor. Mas o poder da fé se revelou aquele que acabou derrocando o sistema de poder soviético em 1989, permitindo um novo começo. É indiscutível que a fé do Papa foi um elemento essencial no desmoronamento do poder comunista. A grandeza evidente em Leão I e Gregório I, portanto, é certamente visível também em João Paulo II.
Deixamos em aberto se o epíteto “magno” prevalecerá ou não. O certo é que o poder e a bondade de Deus se fizeram visíveis para todos nós em João Paulo II. Num momento em que a Igreja sofre mais uma vez a aflição do mal, este é um sinal, para nós, de esperança e confiança.
Querido São João Paulo II, rogai por nós!
Bento XVI
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