Nos tempos atuais, vivemos um estranho paradoxo: pessoas não religiosas acusam as que têm fé de impor suas convicções a toda a sociedade, mas as pessoas religiosas frequentemente se sentem perseguidas e sem direito a expressar suas opiniõesUm posicionamento do ministro Edson Fachin, membro tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Tribunal Superior Eleitoral, reabriu os debates sobre a influência e legitimidade da influência das igrejas nas eleições, levantando a questão do “abuso do poder religioso”.
A legislação já proíbe que propaganda partidária e eleitoral seja feita em templos e o financiamento de campanhas políticas com dinheiro de entidades religiosas. Não se trata de uma perseguição à fé. A Lei Nº 9.504, de 1997, proíbe a propaganda eleitoral em todos os bens de uso comum, isso é, lugares que se prestam ao uso de todos, independentemente de suas preferências partidárias, como templos, estádios e até lojas.
Laicidade e diálogo
O próprio magistério católico, mesmo incentivando a participação de todos na política (entendida como construção do bem comum, cf. Compêndio de doutrina social da Igreja, CDSI 189ss), deixa claro que as escolhas partidárias são de caráter pessoal e não podem ser forçadas pela comunidade religiosa (CDSI 573-574). Mas então, como ficam os partidos democrata-cristãos? Os cristãos têm o direito de se organizar em partidos orientados por valores evangélicos, mas não podem querer que seus irmãos de fé votem obrigatoriamente neles. Muitos erros foram cometidos no século XX porque políticos com atuação bem pouco comprometida com o bem comum se filiavam aos partidos democrata-cristãos só para terem votos garantidos dos católicos…
As democracias modernas são laicas, isso é, supõem a participação e os direitos sociais e políticos a pessoas de todas as religiões ou ateias (cf. CDSI 571ss), mas não são antirreligiosas, não podem perseguir nenhuma fé ou igreja. Contudo, a questão sobre a qual gostaria de refletir aqui é a existência ou não de um poder religioso, que poderia ser alvo de abusos, em nossa sociedade.
Nos tempos atuais, vivemos um estranho paradoxo: pessoas não religiosas acusam as que têm fé de impor suas convicções a toda a sociedade, mas as pessoas religiosas frequentemente se sentem perseguidas e sem direito a expressar suas opiniões. Temos todos de reconhecer o quanto é difícil o diálogo político na sociedade. Os grupos partidários frequentemente se acusam mutuamente de tentar impor sua vontade aos demais – e a “vontade da maioria” muitas vezes se torna uma “imposição dos mais poderosos e articulados”. Assim, quem perde o debate político se sente perseguido e oprimido pelos vencedores, que passam a entender a sua opinião como a única válida. Mas o problema é complexo.
O poder dos influenciadores e o fracasso dos políticos
O suposto poder das religiões nasce de sua credibilidade junto à população. A maioria dos eleitores não tem formação ou disponibilidade de tempo para acompanhar e julgar o comportamento dos políticos. Assim, procura quem parece mais informado e sábio para ajudar na tomada de decisões nas eleições. É natural que bispos, padres, pastores e outras lideranças religiosas se tornem uma fonte de discernimento político nessas horas.
Esse papel não é desempenhado apenas pelas lideranças religiosas. Muitas personalidades públicas, como jornalistas, intelectuais, artistas e esportistas influenciam a população – mesmo que não tenham capacitação para dar essa orientação. Essas influências são frequentemente questionadas na sociedade. Não só a influência das religiões, mas também a da imprensa, dos meios de entretenimento, dos artistas, etc…
Quanto mais a população está desencantada com o desempenho dos políticos e quanto menos preparada para julgar o que está acontecendo nas várias esferas de governo, maior a procura e o poder desses formadores de opinião. As lideranças religiosas, nesse contexto, se tornam importantes porque dizem uma palavra de esperança, conforto, bondade e sabedoria de vida para as pessoas. O grande capital de qualquer igreja é a credibilidade que vem dessa capacidade de ajudar seus fiéis a viverem melhor. Se governantes, legisladores e magistrados não conseguem, em suas respectivas áreas de atuação, transmitir segurança aos cidadãos, é natural que eles procurem orientação junto às lideranças religiosas que lhes parecem confiáveis.
Nesse sentido, se os políticos acreditam que existe uma ameaça do poder religioso (ou do poder de qualquer outro influenciador social) devem, antes de mais nada, melhorar sua atuação e sua representatividade junto à população. Melhores personalidades públicas canalizam as discussões políticas para espaços apropriados, onde os cidadãos têm melhores condições de discernir sobre as questões apresentadas e os enganadores são mais facilmente desmascarados.
O risco da manipulação
As lideranças religiosas são seres humanos como todos os demais, sujeitos a erros e falhas tanto quanto os fiéis. Sendo assim, a influência religiosa pode ser boa ou má para a construção do bem comum, dependendo da qualidade e da fidelidade da mensagem transmitida – além de sempre existir o perigo de manipulações.
O influenciador – seja religioso, seja uma personalidade da mídia ou até um jornalista – poucas vezes tem uma formação adequada para opinar sobre os complexos problemas de nossa sociedade. Ninguém consegue entender simultaneamente de finanças, mercados, serviço social, saúde pública, funcionamento das leis, conservação do meio ambiente, educação das crianças e tudo mais… Todos dependemos de consultas a especialistas nesse ou naquele tema para formarmos um juízo realista sobre os problemas sociais.
Pode acontecer que o influenciador emita opiniões sem se preparar adequadamente para entender o problema ou busque aconselhamento com pessoas também despreparadas, só porque são amigas ou fiéis de sua comunidade. Pior ainda quando o próprio influenciador é um ideólogo ou uma pessoa mal intencionada, que se aproveita da carência religiosa e política dos demais.
É justo que a sociedade como um todo procure se proteger dessas pessoas mal preparadas, dos charlatães, demagogos e enganadores do povo. Mas isso não pode ser feito censurando aqueles que gozam da confiança dos eleitores. A educação política, que é um processo longo e que envolve tanto acesso à informação quanto experiência em participação, é a única forma realmente democrática de minimizar o poder dos enganadores e fortalecer os que querem o bem comum.
Cada um de nós, pessoas de fé e participantes da vida da Igreja, pode colaborar nesse processo. Para isso, precisamos procurar sempre o máximo de informação possível sobre os problemas (incluindo as posições daqueles que pensam diferente de nós) e dialogar com amigos e lideranças, para obtermos todos um discernimento informado e iluminado pelo amor e pela verdade.