“Precisamos de trabalhar urgentemente para gerar boas políticas, para conceber sistemas de organização social que recompensem a participação, o cuidado e a generosidade”Em sua catequese desta quarta-feira, no Vaticano, o Papa Francisco discursou mais uma vez sobre como curar o mundo que sofre de um mal-estar que a pandemia realçou e acentuou.
O Papa pediu que “possamos continuar a caminhar juntos, mantendo os olhos fixos em Jesus”: o nosso olhar em Jesus que “salva e cura o mundo”.
Mobilizados interiormente por estes clamores que reclamam de nós outra linha de ação, reclamam uma mudança, poderemos contribuir para a cura das relações com os nossos dons e capacidades.
Assim – prosseguiu o Papa – “poderemos regenerar a sociedade e não voltar à chamada ‘normalidade’, que é uma normalidade doentia, aliás, estava doente já antes da pandemia: a pandemia realçou-a”.
“Agora voltemos à normalidade”: não, assim não pode ser, porque esta normalidade estava doente de injustiças, desigualdades e degradação ambiental. A normalidade a que somos chamados é a do Reino de Deus.
De acordo com o Papa, na normalidade do Reino de Deus “o pão chega a todos e sobra, a organização social baseia-se em contribuir, partilhar e distribuir, não em possuir, excluir e acumular”.
O gesto que faz progredir uma sociedade, uma família, um bairro, uma cidade, todos, é doar-se, dar, que não é dar esmola, mas uma dádiva que vem do coração. Um gesto que afasta o egoísmo e a ansiedade de possuir.
O Papa explicou que “nunca conseguiremos sair da crise que emergiu da pandemia, mecanicamente, com novos instrumentos – que são muito importantes, que nos fazem ir em frente e dos quais não devemos ter medo – mas sabendo que os meios mais sofisticados poderão fazer muitas coisas, mas uma coisa eles nunca poderão fazer: a ternura”.
E a ternura é o próprio sinal da presença de Jesus. Aproximar-se do outro para caminhar, para curar, para ajudar, para se sacrificar pelo outro.
Assim – disse o Papa –, “a normalidade do Reino de Deus é importante: que o pão chegue a todos, a organização social se baseie em contribuir, partilhar e distribuir, com ternura, e não em possuir, excluir e acumular. Pois no final da existência nada levaremos para a outra vida”.
Precisamos de trabalhar urgentemente para gerar boas políticas, para conceber sistemas de organização social que recompensem a participação, o cuidado e a generosidade, e não a indiferença, a exploração e os interesses particulares.
Devemos ir em frente com ternura. Uma sociedade solidária e equitativa é uma sociedade mais saudável. Uma sociedade participativa – onde os “últimos” são considerados os “primeiros” – fortalece a comunhão. Uma sociedade onde a diversidade é respeitada é muito mais resistente a qualquer tipo de vírus.
Eis a íntegra da catequese do Papa:
PAPA FRANCISCO
AUDIÊNCIA GERAL
Pátio São Dâmaso
Quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Nas últimas semanas, refletimos juntos, à luz do Evangelho, sobre como curar o mundo que sofre de um mal-estar que a pandemia realçou e acentuou. Já havia o mal-estar: a pandemia realçou-o mais, acentuou-o. Percorremos os caminhos da dignidade, da solidariedade e da subsidiariedade, caminhos indispensáveis para promover a dignidade humana e o bem comum. E, como discípulos de Jesus, começamos a seguir os seus passos, optando pelos pobres, reconsiderando o uso dos bens e cuidando da casa comum. No meio da pandemia que nos aflige, ancorámo-nos nos princípios da doutrina social da Igreja, deixando-nos guiar pela fé, pela esperança e pela caridade. Aqui encontramos uma ajuda sólida para sermos agentes de transformação que fazem sonhos grandiosos, que não se detêm nas mesquinharias que dividem e magoam, mas encorajam a gerar um mundo novo e melhor.
Gostaria que este percurso não termine com estas minhas catequeses, mas que possamos continuar a caminhar juntos, «mantendo os olhos fixos em Jesus» (Hb 12, 2), como ouvimos no início; o nosso olhar em Jesus que salva e cura o mundo. Como o Evangelho nos mostra, Jesus curou os doentes de todos os tipos (cf. Mt 9, 35), restituiu a vista aos cegos, a palavra aos mudos e audição aos surdos. E quando curava doenças e enfermidades físicas, também curava o espírito perdoando pecados, porque Jesus perdoa sempre, bem como as «dores sociais» incluindo os marginalizados (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1421). Jesus, que renova e reconcilia cada criatura (cf. 2 Cor 5, 17; Cl 1, 19-20), concede-nos os dons necessários para amar e curar como ele sabia fazer (cf. Lc 10, 1-9; Jo 15, 9-17), para cuidar de todos sem distinção de raça, língua ou nação.
Para que isto aconteça realmente, precisamos de contemplar e apreciar a beleza de cada ser humano e de cada criatura. Fomos concebidos no coração de Deus (cf. Ef 1, 3-5). «Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário»[1]. Além disso, cada criatura tem algo a dizer-nos sobre Deus Criador (cf. Enc. Laudato si’, 69.239). Reconhecer esta verdade e dar graças pelos vínculos íntimos da nossa comunhão universal com todas as pessoas e todas as criaturas ativa «um cuidado generoso e cheio de ternura» (ibid., 220). Ajuda-nos também a reconhecer Cristo presente nos nossos irmãos e irmãs pobres e sofredores, a encontrá-los e a ouvir o seu clamor e o clamor da terra que lhes faz eco (cf. ibid., 49).
Mobilizados interiormente por estes clamores que reclamam de nós outra linha de ação (cf. ibid., 53), reclamam uma mudança, poderemos contribuir para a cura das relações com os nossos dons e capacidades (cf. ibid., 19). Poderemos regenerar a sociedade e não voltar à chamada “normalidade”, que é uma normalidade doentia, aliás, estava doente já antes da pandemia: a pandemia realçou-a! “Agora voltemos à normalidade”: não, assim não pode ser, porque esta normalidade estava doente de injustiças, desigualdades e degradação ambiental. A normalidade a que somos chamados é a do Reino de Deus, onde «os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres» (Mt 11, 5). E ninguém faz de contas olhando para o outro lado. É isto que temos de fazer para mudar. Na normalidade do Reino de Deus o pão chega a todos e sobra, a organização social baseia-se em contribuir, partilhar e distribuir, não em possuir, excluir e acumular (cf. Mt 14, 13-21). O gesto que faz progredir uma sociedade, uma família, um bairro, uma cidade, todos, é doar-se, dar, que não é dar esmola, mas uma dádiva que vem do coração. Um gesto que afasta o egoísmo e a ansiedade de possuir. Mas o modo cristão de o fazer não é um modo mecânico: é um modo humano. Nunca conseguiremos sair da crise que emergiu da pandemia, mecanicamente, com novos instrumentos – que são muito importantes, que nos fazem ir em frente e dos quais não devemos ter medo – mas sabendo que os meios mais sofisticados poderão fazer muitas coisas, mas uma coisa eles nunca poderão fazer: a ternura. E a ternura é o próprio sinal da presença de Jesus. Aproximar-se do outro para caminhar, para curar, para ajudar, para se sacrificar pelo outro.
Assim, a normalidade do Reino de Deus é importante: que o pão chegue a todos, a organização social se baseie em contribuir, partilhar e distribuir, com ternura, e não em possuir, excluir e acumular. Pois no final da existência nada levaremos para a outra vida!
Um pequeno vírus continua a causar feridas profundas e a expor as nossas vulnerabilidades físicas, sociais e espirituais. Pôs a nu a grande desigualdade que reina no mundo: desigualdade de oportunidades, de bens, de acesso aos cuidados médicos, à tecnologia, à educação: milhões de crianças não podem ir à escola, e assim por diante. Estas injustiças não são naturais nem inevitáveis. São obra do homem, vêm de um modelo de crescimento separado dos valores mais profundos. O desperdício das sobras de refeições: com esse desperdício podemos dar de comer a toda a gente. E isto fez com que muitas pessoas perdessem a esperança e aumentou a incerteza e a angústia. É por isso que, para sair da pandemia, temos de encontrar a cura não só para o coronavírus – que é importante! – mas também para os grandes vírus humanos e socioeconómicos. Não devemos escondê-los, dando uma pincelada para que não possam ser vistos. E certamente não podemos esperar que o modelo económico subjacente ao desenvolvimento injusto e insustentável resolva os nossos problemas. Não o fez nem o fará, pois não o pode fazer, apesar de alguns falsos profetas continuarem a prometer “o efeito dominó” que nunca chega[2]. Ouvistes o teorema do copo: o importante é que o copo se encha e assim depois cai sobre os pobres e sobre os demais, e recebem riquezas. Mas há um fenómeno: o copo começa a encher-se e quando está quase cheio, cresce, cresce e cresce mas nunca acontece o efeito dominó. Deve-se ter cuidado.
Precisamos de trabalhar urgentemente para gerar boas políticas, para conceber sistemas de organização social que recompensem a participação, o cuidado e a generosidade, e não a indiferença, a exploração e os interesses particulares. Devemos ir em frente com ternura. Uma sociedade solidária e equitativa é uma sociedade mais saudável. Uma sociedade participativa – onde os “últimos” são considerados os “primeiros” – fortalece a comunhão. Uma sociedade onde a diversidade é respeitada é muito mais resistente a qualquer tipo de vírus.
Coloquemos este caminho de cura sob a proteção da Virgem Maria, Nossa Senhora da Saúde. Ela, que carregou Jesus no seu ventre, nos ajude a ter confiança. Animados pelo Espírito Santo, poderemos trabalhar juntos para o Reino de Deus que Cristo inaugurou, vindo até nós, neste mundo. É um Reino de luz no meio da escuridão, de justiça no meio de tantos ultrajes, de alegria no meio de tanta dor, de cura e salvação no meio da doença e da morte, de ternura no meio do ódio. Que Deus nos conceda “viralizar” o amor e globalizar a esperança à luz da fé.
[1] Bento XVI, Homilia para o Início do Ministério Petrino (24 de abril de 2005); cf. Laudato si’, 65.
[2] “Trickle-down effect” em inglês, “derrame” em espanhol (cf. Evangelii gaudium, 54).
Saudações:
Dirijo uma cordial saudação aos fiéis de língua portuguesa. Hoje celebramos a memória de São Jerônimo que nos lembra que a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo. Queridos amigos, de bom grado fazei da Bíblia o alimento diário do vosso diálogo com o Senhor, assim vos convertereis em colaboradores sempre mais disponíveis para trabalhar pelo Reino que Jesus inaugurou neste mundo. Que Deus vos abençoe a vós e a vossos entes queridos!
Resumo da catequese do Santo Padre:
Durante as últimas semanas, refletimos, à luz do Evangelho, sobre o modo de curar o mundo, percorrendo, ancorados nos princípios da doutrina social da Igreja e guiados pela fé, esperança e caridade, os caminhos da dignidade, da solidariedade, da subsidiariedade, necessários para promover a dignidade humana e o bem comum, optando pelos pobres, repensando o uso dos bens e assumindo o cuidado da nossa casa comum. Esses caminhos nos inspiram a preparar o futuro junto com Jesus, que salva e cura as pessoas e as relações humanas, renovando e reconciliando a todas as criaturas, sem fazer distinção de raça, língua ou nação. Jesus nos ensina que cada um de nós é querido e amado por Deus e que devemos saber reconhecê-Lo presente nos nossos irmãos, sobretudo nos pobres e sofredores. Desse modo poderemos regenerar a sociedade e não voltar à famigerada “normalidade”, uma vez que tal normalidade, como nos evidenciou a pandemia, estava doente de injustiças, desigualdades e degradação ambiental. A normalidade, à qual estamos, chamados é a do Reino de Deus, marcada pela partilha e a solidariedade. Esse é o caminho para construir uma sociedade participativa muito mais resistente a qualquer tipo de vírus. Neste processo de cura, contamos com a proteção da Virgem Maria, Nossa Senhora da Saúde, que há de nos ajudar a “viralizar” o amor e a globalizar a esperança à luz da fé.
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