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“Fratelli tutti”, sobreviventes e refugiados da pandemia

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 04/10/20
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“Todos irmãos”, a primeira encíclica social de uma época de grave emergência sanitária que assola o mundoA vida sempre dá voltas, diz a sabedoria popular. Até uns 6 meses atrás, o Papa Francisco era uma das vozes – felizmente não poucas, mas ainda assim insuficientes – que se levantava para defender os refugiados e migrantes, os excluídos e empobrecidos mais característicos de nosso tempo. Veio a pandemia de Covid-19 e a maior parte do mundo se tornou, de uma forma ou de outra, refém do vírus. A pandemia não é apenas um fenômeno epidemiológico, mas deflagrou uma crise social, econômica, cultural e política.

 

Para que a solidariedade supere o individualismo

Muitos nos tornamos refugiados – alguns se abrigando em suas casas, em condições confortáveis ou precárias, outros se abrigando em sua raiva, negando a necessidade de proteção e distanciamento social. Outros, impossibilitados de optar por qualquer refúgio, se tornaram peregrinos ou guerreiros desse novo normal, indo às ruas para executar as tão faladas “atividades essenciais”, que colocavam a eles e suas famílias num risco ainda maior. Todos, que não morremos, de certa forma, sobreviventes de um tempo de guerra, insegurança e privação.

As dificuldades fazem brotar, no coração humano, aquilo que tem de pior e aquilo que tem de melhor. Na crise, se revela a lógica individualista e o oportunismo dos que querem salvar-se (e até enriquecer-se) a qualquer custo, sem se importar com os demais; mas também se manifesta a solidariedade, a revisão das metas e prioridades pessoais, a revalorização do outro e o desejo de construir um mundo melhor. O valor positivo das crises vem do quanto conseguimos aprender e mudar com elas, antes de sermos engolidos novamente pela insensibilidade e indiferença que marcam nossa rotina.

Para nós, que vivemos nesse mundo, que se depara – simultaneamente – com tanta solidariedade e tanto individualismo, Francisco escreveu Fratelli tutti (FT). O Papa constata, num período recente, uma espécie de “refluxo” de uma tendência, que parecia vir num crescente, de integração e solidariedade. Fala de “sonhos despedaçados” e da falta de um “projeto para todos” (FT 11-17). A pandemia reacendeu a chama da solidariedade, mas nós rapidamente esquecemos as lições da história e, por isso, é necessário “recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens” (FT 34-35).

 

Estrutura da obra

Entre as sombras de um mundo fechado pelo individualismo, onde muitos sofrem pela pobreza e a exclusão, outros pela solidão e o vazio da alma (Capítulo I), surge “um estranho no caminho”, alguém que se orienta não pelo próprio interesse, mas pelo amor ao próximo, ilustrado pelo Bom Samaritano do Evangelho (Capítulo II). Fratelli tutti se dedica a explicitar como, a partir da presença desse “estranho”, dessa pessoa que rompe com as regras do individualismo, pode ser construída uma sociedade mais justa, mais humana e solidária.

O estrangeiro – os refugiados e migrantes, privados de pátria e direitos, os mais excluídos entre todos em nossa sociedade – e o “descartado” – o pobre excluído, os abandonados, os velhos e os doentes – são os personagens emblemáticos desse mundo fechado pelo individualismo (Capítulos III e IV). A esse mundo se contrapõe uma “política melhor” (Capítulo V), fundada na caridade e na solidariedade, num clima de diálogo (Capítulo VI), que conduz à cultura do encontro (Capítulo VII).

Por fim, no último Capítulo, o Papa fala da relação entre as religiões e a fraternidade no mundo, salientando que nenhuma delas pode servir de pretexto para a violência e que todas podem colaborar para aumentar a fraternidade entre os povos.

 

As manifestações político ideológicas do individualismo

Francisco salienta que a caridade e a fraternidade não podem permanecer circunscritas ao âmbito particular de cada um, mas devem se manifestar na vida política, orientando as formas de organização e construção da sociedade e da economia. Paralelamente, denuncia as formas pelas quais o individualismo se manifesta no campo político ideológico.

Critica uma visão dos mercados como capazes de, por si só, resolverem os problemas sociais (FT 168). Eles são espaços onde pode se dar a solidariedade entre produtores e consumidores, mas se torna – mais frequentemente – espaço da concorrência individualista e da maximização dos lucros em detrimento das pessoas. Uma situação como essa, levada às últimas consequências, só pode gerar crises. Por isso, para seu próprio desenvolvimento, a economia precisa estar a serviço de uma política orientada para a construção do bem comum, fruto do amor fraterno. O Papa reconhece o valor da vocação do empresário, mas lembra que o desenvolvimento da atividade econômica como um todo deve ser orientada para o bem comum (FT 122-123).

Igualmente critica os nacionalismos (FT 11, 141) e os populismos “fechados” e “insanos” (FT 159-161), que extrapolam a lógica individualista agora não para as pessoas, mas para os grupos sociais. Essas ideologias, carregadas de raiva e ressentimento para com os demais, não são capazes de organizar uma sociedade baseada na solidariedade – e com isso acabam falhando na construção do bem comum. Esses populismos não podem ser confundidos com a justa emergência de líderes sociais e movimentos populares, que lutam pelos direitos dos mais pobres (FT 169).

 

A fraternidade e os brasileiros

Francisco refere-se continuamente ao conceito de “povo”, a sua identidade e à força de seus vínculos e laços de coesão (FT 158). O povo brasileiro se reconheceu, historicamente, de forma muitas vezes um pouco idealizada, como povo cristão, fraterno e solidário. Mas também nós vamos vendo o individualismo, a busca pelos próprios interesses, a raiva e o rancor tomarem conta de nossa cultura.

Muitas vezes, nos parece que são os maus comportamentos dos corruptos e dos violentos que estão educando nosso povo – e não os exemplos positivos de amor, solidariedade, compaixão que animam nossa tradição popular. Fratelli tutti é uma ocasião para que todos nós revejamos essa dinâmica e nos engajemos na (re)construção de uma sociedade solidária no Brasil.

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