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A sabedoria mística de São Bruno, o pai dos cartuxos

SAINT BRUNO

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Dom Orani João Tempesta - publicado em 05/10/20

A Ordem Cartusiana, fundada por São Bruno – que, em 1984, completou 900 anos –, cresceu, se solidificou e espalhou-se por diversos países

No dia 6 de outubro, celebramos a memória de São Bruno de Reims que, em 24 de junho de 1084, com seis companheiros se estabeleceu, sob a orientação de Dom Hugo, Bispo de Grenoble, em um vale solitário a 1175 metros acima do nível do mar, no coração do deserto de Chartreuse (em português, Cartuxa). Era a fundação da Ordem Cartusiana (os Cartuxos).

Passou aí muito menos tempo do que desejara, pois, no final do ano de 1089 ou início de 1090, atendendo ao chamado do Papa Urbano II, partiu para Roma. Permaneceu pouco ali, pois as tropas imperiais e o antipapa Clemente III fizeram com que Urbano II e toda Cúria Romana tivesse de se trasladar para o sul da Itália. Bruno os acompanhou. No final de 1090 ou começo de 1091, esse mesmo Papa quis elevar o Pai dos monges cartuxos a arcebispo de Reggio Calábria (Itália). Bruno, além de declinar da arquidiocese, solicitou ao Santo Padre a volta à vida contemplativa de Chartreuse. O Papa concordou, mas pediu-lhe que ficasse na região da Calábria. Ele, uma vez mais, obedeceu e lá fundou o eremitério de Santa Maria da Torre, hoje Serra de São Bruno, na diocese de Squillace. Nele viveu até o dia de entregar sua alma a Deus: 6 de outubro de 1101. O Papa Leão X autorizou oralmente, em 19/07/1514, seu culto. Este foi estendido à toda a Igreja em 17/02/1623 pelo Santo Padre Gregório XV.

A São Bruno se atribui, com certeza, a autoria da “Carta a Raul”, na qual estimula este seu amigo a abraçar a vida religiosa, da “Carta aos seus filhos cartuxos”, onde expressa paternal apreço por seus filhos espirituais do deserto de Chartreuse, além da “Expositio in Psalmos”. Aqui, nosso santo, fiel à tradição dos Padres da Igreja, interpreta os Salmos em sentido cristológico e eclesiológico: em outras palavras, Cristo e sua Igreja são os assuntos quase únicos do Saltério. No “De contemptu mundi”, o monge tece louvores ao desprezo ou à fuga do mundo, ao passo que na “Confessio fidei magistri Brunonis” registra a profissão de fé que recitou pouco antes de morrer. Há quem atribua também a São Bruno um comentário às Cartas de São Paulo, a “Expositio in Epistolas Pauli”. Todavia, outros estudiosos a rejeitam. Pode ser que venha de sua escola de pensamento teológico, mas não parece ser da pena do santo.

A Ordem Cartusiana, fundada por São Bruno – que, em 1984, completou 900 anos –, cresceu, se solidificou e espalhou-se por diversos países, chegando também ao Brasil. Temos, na Arquidiocese de Santa Maria (RS), serrania de Três Mártires, perto de Ivorá, a Cartuxa masculina Nossa Senhora Medianeira. Ela – a pedido dos Bispos gaúchos, tendo à frente Dom Ivo Lorscheiter, Bispo da então Diocese de Santa Maria –, foi fundada, em 21 de novembro de 1984. Para satisfazer a sadia curiosidade de, certamente, não poucos leitores, registro os horários da Cartuxa brasileira que não é muito diferente em nenhuma outra: 00.00 – Vigília Noturna em comunidade; 02.45 aproximadamente – Repouso; 06.30 – Levantar. Prima. Oração (na cela); 08.00 – Missa Conventual; 09.00 – Tércia. Lectio divina. Estudo. Trabalho; 12.00 – Sexta. Refeição. Tempo livre. Estudo. Trabalho. Leitura; 14.00 – Noa; 17.30 – Vésperas (em comunidade); 19.30 – Completas. Repouso e 23.45 – Levantar (para a Vigília). Os monges acrescentam a este quadro uma nota: “o horário é para o monge, e não o monge para o horário, por isso sempre o monge pede ter uma santa liberdade dentro dos tempos que não são consagrados à oração na igreja conventual” (Do site http://www.chartreux.org/pt/casas/medianeira/index.php).

Importa dizer também – e com alegria – que o Brasil conhece, hoje, por graça de Deus, diversas obras de monges cartuxos publicadas por várias Editoras. Destaco, no entanto, uma que, a meu ver, é um dos maiores monumentos literários da Ordem Cartusiana, seja pela quantidade de autores reunidos, seja pela profundidade de tão variados e ricos ensinamentos no campo da espiritualidade, não só monástica, mas cristã em geral. Refiro-me à “Antologia de autores cartuxos: itinerário de contemplação”. Composta por um anônimo cartuxo da Itália e lá publicada em 1984, foi traduzida para o português, enriquecida com um Apêndice intitulado “O ideal do verdadeiro cartuxo” – datado do século XVIII –, neste ano de 2020, dada à luz pela Cultor de Livros, de São Paulo (SP), com 507 páginas. É da aludida obra que passo a citar alguns trechos escritos por São Bruno. Apresento, assim, aos prezados leitores um pouco da profunda sabedoria mística do santo fundador da Ordem Cartusiana. Ei-la:

1 – Sobre a fascinação por Deus: “Que outro ser é tão bom como Deus? Melhor ainda, que outro Bem há senão só Deus? Por isso, a alma santa, percebendo em parte o incomparável atrativo, esplendor e beleza desse bem, inflamada em chama de amor, diga: ‘A minha alma tem sede do Deus forte e vivo, quando irei ver a face de Deus?’ (Sl 41,3). (Carta a Raul, 16)”. (Antologia, p. 63)

2 – A alegria do silêncio: “O que a solidão e o silêncio do deserto proporcionam de utilidade e gozo divino a quem os ama só o sabem os que o experimentaram. Aqui, com efeito, podem os varões esforçados recolher-se em si quanto queiram e morar consigo mesmos, cultivar com afã os germes das virtudes e alimentar-se com alegria dos frutos do paraíso. Aqui, se adquire aquele olhar cuja visão clara fere de amores o Esposo e cuja pureza e limpidez [nos] permite ver a Deus. Aqui, se pratica um ócio bem ocupado, se repousa numa sossegada atividade (otium celebratur negotiosum… in quieta pausatur actione). Aqui, pelo esforço do combate dá Deus aos seus atletas a desejada recompensa: a paz que o mundo ignora e ‘a alegria no Espírito Santo’ (Rm 14,17). (Carta a Raul, 6)”. (Antologia, p. 173)

3 – Escada espiritual: “‘Em minha angústia, gritei ao Senhor e Ele me respondeu’ (Sl 119,1ss). Este salmo e os outros catorze que seguem são chamados salmos graduais e cânticos ascensionais, porque representam os quinze degraus que a alma fiel tem de percorrer com alegria, esperança, fé e outras virtudes para ascender ao Santo dos santos da Jerusalém celestial. […] ‘Se o Senhor não estivesse estado conosco…’ (Sl 123,1ss). O quinto degrau está em atribuir a Deus, e não a si mesmo, a fidelidade em atender à sua vontade de cuja aplicação não pode ser dissuadido pela murmuração, nem pela adulação. ‘Quem confia no Senhor é como o Monte Sião: não balança, está firme para sempre…’ (Sl 124,1ss). O sexto degrau consiste em elevar-se até o ponto de colocar totalmente a própria confiança só no Senhor, sem esperar mais no homem. O Salmista exorta aos que o escutam para ter essa confiança em Deus. ‘Quando o Senhor fez voltar os cativos de Sião: parecíamos sonhar…’ (Sl 125,1ss). O sétimo degrau é o estado dos que já passaram da escravidão à liberdade, por isso sentem-se consolados e dilatados pela plenitude da alegria. Rezam para adquirir uma maior liberdade, sendo possível crescer sempre mais nela. Por escravidão, entende-se a condição dos que servem a Deus por temor da pena e pela autoridade de quem manda. Essa escravidão se transforma em liberdade quando os fiéis são inflamados por uma grande caridade divina para servir a Deus já não por temor, mas unicamente por amor e sem dificuldade alguma. Não obstante, servi-Lo-iam ainda que soubessem que o pecado não chegara a ser perdoado, assim como os filhos servem espontaneamente aos pais sem estar constrangidos por alguma necessidade. ‘Se o Senhor não constrói a casa, em vão se cansam os trabalhadores…’ (Sl 126,1ss). O oitavo degrau é o da humilde preocupação por não cair. O salmo que tem por título ‘Cântico de Salomão’ nos adverte de não ufanar-se para não cair depois de ter alcançado o degrau da liberdade, recordando-nos ter sempre presente que Salomão, não obstante a sua sabedoria e o dom da profecia, caiu em idolatria, tanto mais podemos cair nós que somos muito inferiores a ele. Por isso, temos de estar sempre temerosos de cair (cf. 1Cor 10,12), conservando-nos em uma constante humildade, na persuasão de que, se nos mantemos em pé, devemo-lo unicamente ao Senhor que nos guarda. […] ‘Do abismo profundo clamo a Ti, Senhor, escuta a minha voz…’ (Sl 129,1ss). Neste décimo primeiro degrau, trata-se de um grito de súplica de quem necessita dirigir-se a Deus, aqueles que estão imersos na tribulação para que o Senhor, apesar de suas culpas, não permita que tenham de sucumbir. Estes, com efeito, chegariam a menos se Deus quisesse ter em conta os seus pecados e castigá-los. Ninguém é tão perfeito que nele não se possa encontrar culpa. Por isso, o Salmista […] declara ter gritado a Deus para não sucumbir e ter esperado n’Ele, não pela força dos próprios méritos, mas porque o Senhor é bom, ensinando, assim, a pôr toda esperança não nas próprias virtudes, mas na misericórdia de Deus. […] ‘Bendizei ao Senhor, todos vós, servos do Senhor’ (Sl 133,1ss). O décimo quinto e último degrau está em não atribuir a si mesmo, mas ao Senhor, o mérito de ter podido subir todos esses degraus e cumprir toda boa ação por amor de Deus, e, assim, viver para o Seu louvor e glória. (Exposito in Psalmos. 119-133. PL 152,1313-1345)”. (Antologia, p. 191-193)

4 – Imaculada: “‘O Senhor se inclinou da sua santa altura’ (Sl 101,20), quando graças à sua encarnação ‘nos visitou o Sol que nasce do alto’ (cf. Lc 1,78) e, mais precisamente, ‘o Senhor do céu olhou para a terra’, quando do seu trono chegou ao seio da Virgem. Ela, com efeito, é aquela terra incorruptível que Deus abençoou, e que, por isso, está livre de todo contágio de pecado. Por meio d’Ela nós conhecemos o caminho da vida e recebemos a Verdade prometida, já que Ela mereceu que o Senhor do céu olhasse para a terra. Todavia, com que intento a olhou? ‘Para ouvir o suspiro dos cativos’ (Sl 101,21), as súplicas daqueles que, por causa do pecado dos pais, se encontravam nas regiões inferiores […] e dos que estavam acorrentados ao pecado pelo demônio. Com efeito, principalmente por isso Cristo veio ao mundo: para libertar os mortos dos infernos e soltar os vivos das cadeias do pecado. (Expositio in Psalmos, 101. PL 152,1167-1168)”. (Antologia, p. 259-260)

5 – O canto da Paixão: “Cristo louva a Deus intencionalmente, com a voz e com a ação; não desistindo do louvor nem mesmo em sua Paixão, na qual, de modo particular, Deus é louvado. ‘In carminibus’ [em versos]: Ele persevera no louvor até à perfeita eternidade; persevera ali, tanto na prosperidade quanto na adversidade, até que Deus o conduza à imortalidade de todo perfeita. (Expositio in Psalmos, 44. PL 152,878)”. (Antologia, p. 298)

6 – Exultação perene: “Buscam a Deus dedicando-se à contemplação, e isso de todo o coração, aqueles que, deixando de lado qualquer solicitude pelos bens deste mundo, aspiram só a Deus por meio da contemplação; buscam-no e desejam somente a Ele com todo o afeto de seu próprio coração; buscam com todo o amor os segredos mais ocultos de sua divindade. (Expositio in Psalmos, 118, PL 152,1559)” (Antologia, p. 383)

“Ó justo, exultai de alegria; e, para bem poderdes fazer isso, cantai a Deus, isto quer dizer, louvá-lo em contemplação. Aplica-te à vida contemplativa que consiste em atender à oração e contemplar os segredos de Deus deixando tudo o que é terreno. (Expositio in Psalmos, 67, PL 152.952). (Antologia, p. 383)

Que estas profundas meditações místicas de São Bruno calem fundo – com a graça de Deus – em nossos corações. Amém!




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