Aleteia logoAleteia logoAleteia
Terça-feira 16 Abril |
Aleteia logo
Religião
separateurCreated with Sketch.

Como Jesus evangelizou?

Christ in Gethsemane

Heinrich Hofmann | Public Domain

Francisco Catão - publicado em 15/11/20

Todos gostaríamos de saber: como procedia Jesus? Os dados que temos, porém, não podem ser devidamente avaliados se não soubermos antes: quem é Jesus?

Jesus evangelizava a partir de quem ele era: o próprio Evangelho, o Evangelizador por excelência. A ação evangelizadora de Jesus tinha, pois, como objetivo imediato e como meta final, a intimidade com Deus, experiência pessoal a ser efetivamente vivida por todo aquele que crê.

Quem foi Jesus?

Desde há dois mil anos de cristianismo, esse é o problema central para os cristãos e, para todos aqueles que se deram conta da importância do cristianismo, acolhendo-o ou combatendo-o, sob as mais variadas formas, ou interpretando-o a seu modo.

Quem foi Ele, o que fez, o que ensinou? Que é preciso fazer para segui-lo? Como combatê-lo?

Saber como Jesus evangelizava, questão que, do ponto de vista  histórico pode ser esclarecida, a partir dos documentos que possuímos, mais numerosos e importantes do que para qualquer outro personagem de seu tempo. No entanto, o desafio básico é saber quem é Jesus, para poder avaliar corretamente o significado e o alcance de sua ação evangelizadora.

Para tanto, a fé cristã hoje está melhor preparada: modernas técnicas de exame da documentação histórica e a influência decisiva do Vaticano II (1962-1965), na maneira como lemos as Escrituras na Igreja, considerando os textos sagrados como comunicação pessoal de Deus conosco, possibilitam-nos maior aproximação do mistério Jesus.

Os evangelhos e demais documentos cristãos, a respeito do agir de Jesus, de sua maneira de evangelizar, devem ser analisados e meditados, a partir do ser de Jesus –  agere sequitur esse (o agir manifesta o ser). Atualmente, essa é a convicção dos estudiosos da Bíblia.

Lembramos o exegeta americano John P. Meier, cuja obra, Um judeu marginal (em português na Editora Imago, do Rio de Janeiro), vem escrevendo há mais de vinte anos, foi talvez quem denunciou primeiro, com mais vigor e erudição, a falácia das vidas de Jesus.

Para ele, “repensar o problema do Jesus histórico” é situar os textos que falam de Jesus no seu contexto, não unicamente histórico, tal como hoje entendemos a história, mas real, como portadores da novidade que Jesus significou para a vida religiosa de Israel.

Sendo autêntico judeu, adorador do Senhor, embora marginal, Jesus foi a Boa Nova para o seu povo, e novidade maior, para o mundo pagão.

Como entender, porém, o modo com que Jesus atuava? Atuava como homem, vivendo plenamente a condição humana; era a Palavra de Deus comunicada aos homens na carne e no Espírito. Paulo o compreendeu no caminho de Damasco (Cf. At,7), (e) João o proclamou no prólogo do quarto evangelho (Jo 1,1-14).

Por isso, no quadro restrito deste artigo, respondemos à questão, dizendo que Jesus evangelizava a partir de quem ele era: o próprio Evangelho, o Evangelizador por excelência, como afirmou o papa Paulo VI ao promulgar o resultado da 3ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em outubro de 1974, na importante Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, em dezembro de 1975.

A gênese da evangelização

Paulo VI, antes de discorrer sobre a ação propriamente evangelizadora da Igreja, seus conteúdos, seus caminhos, seus destinatários e agentes, finalmente o espírito que a deve animar, consagra um primeiro capítulo a “Cristo Evangelizador”, padrão da ação evangelizadora da Igreja: “De Cristo Evangelizador a uma Igreja Evangelizadora” (Evangelii Nuntiandi, 6-16).

Começa com os textos de Lucas (Lc 4,18.43) e registra que “no decorrer do Sínodo, muitas vezes os Bispos lembraram que o próprio Jesus, “Evangelizador de Deus” (cf. está dito no início do Evangelho de Marcos e da Carta aos Romanos) foi o primeiro e maior  dos evangelizadores, que levou a evangelização até o fim, a perfeição, até o sacrifício de sua vida terrena” (Evangelii Nuntiandi, 7).

Sob esse aspecto, a ação evangelizadora de Jesus confere ao termo evangelizar um sentido totalizante, que abrange toda a vida, os comportamentos, ações, palavras e práticas que contribuam, de algum modo, para abrir a todos os homens e mulheres, de todos os tempos e culturas, “o acesso a Deus”, conforme a expressão de Bento XVI (Cf. Exortação Apostólica Verbum Domini, nº 2).

Nesse sentido amplo (extensão do conceito), que coincide, aliás, com sua natureza profunda (compreensão do conceito), a evangelização responde à doutrina neotestamentária da universalidade da salvação, tema central do Vaticano II, que está na base de todo o ensinamento eclesiológico do Concílio: a Igreja não se explica a si mesma, é participação na vida de Deus “sacramento da união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Cf. LG, 1-4).

Evangelização, etimologicamente “proclamação da boa nova (eu-anggelion)”, é o anúncio da efetiva, embora incoativa, realização na história, da realidade profunda de todo ser humano, criado por Deus e voltado para Deus. “Inclinação profunda” que o Catecismo da Igreja Católica (Cat, 27) denomina o “desejo de Deus”.

A evangelização é a manifestação da natureza e da significação primeira dessa aspiração profunda do coração de todos os homens e mulheres, que se explica somente a partir da disposição do Criador de salvar todos os humanos.

É o que os gregos denominavam, tecnicamente, “economia” (oikonomia): disposição geral da casa de Deus distinguindo-a da “theologia”, ou discurso sobre Deus em si mesmo, no seu mistério de comunhão do Filho com o Pai no Espírito.

A maneira de entender a “Oikonomia” variou muito no decurso dos tempos; os teólogos  falaram de “plano”, “propósito” ou “desígnio” de Deus, de acordo com seus diversos matizes teológicos. O Catecismo, para não adotar nenhuma teologia particular, propõe designar essa mesma “disposição” divina de “conselho de Deus” (Consilium Dei).

Do ponto de vista da teologia da evangelização, o importante é não entendê-la como uma tarefa particular da Igreja, mas como uma missão a ser cumprida na história segundo o conselho do Pai, através da missão do Filho e do Espírito Santo, de que a Igreja é o sacramento.

O Sínodo de 2012, sobre a nova evangelização, exprime com clareza essa doutrina básica, logo no início das 58 proposições apresentadas ao Sumo Pontífice, para elaboração da Exortação Apostólica:

“A Igreja e sua missão evangelizadora têm sua origem e fonte na Santíssima Trindade, de acordo com o plano do Pai, a ação do Filho, que culminou na sua morte e gloriosa ressurreição, e no envio do Espírito Santo. A Igreja prossegue essa missão do amor de Deus em nosso mundo” (Sínodo da nova evangelização, 4ª proposição: A Santíssima Trindade fonte da nova evangelização).

A evangelização deve, pois, ser pensada em continuidade com a “missão” das Pessoas divinas, do Filho e do Espírito, enviados pelo Pai, do seio luminoso e ardente da Trindade, “origem e fonte” da missão evangelizadora da Igreja. E o texto vai mais longe, interpretando toda a ação da Igreja como cumprimento de sua missão evangelizadora.

A proposição seguinte, a 5ª, trata da inculturação da evangelização. A atividade evangelizadora tem a liberdade, e até mesmo o dever, de recorrer às experiências e métodos de testemunho, pregação e ação mais apropriados a falar ao coração dos homens e mulheres de acordo com a visão que têm do mundo e em sintonia com as épocas e as culturas em que vivem.

Essa atividade não se mede, porém, nem pela eficácia temporal e histórica, nem pelo sucesso ou conquistas que se possam celebrar, mas pela qualidade comunitária e pessoal da fidelidade ao Senhor, em união com Jesus, no Espírito, e que só Deus conhece.

Jesus, evangelizador

A Trindade é a origem e fonte da ação evangelizadora da Igreja, participação na atividade de Jesus, o que lhe merece, por isso, o título de Evangelizador. Do ponto de vista da fé, a ação evangelizadora de Jesus, decorrente da Theologia, se situa no contexto da Oikonomia, decorrente de sua qualidade pessoal e incomunicável de Palavra de Deus encarnada.

A ação evangelizadora de Jesus se fez, na história, a partir do Conselho do Pai, em vista do Reino, de maneira incoativa “entre nós” (Cf. Lc 17,21), mas definitiva na eternidade. Assim como toda criação tem, na Palavra de Deus, sua fonte inspiradora e normativa, todo agir humano tem, no agir de Jesus, a matriz de sua estrutura e de seu significado.

No imediato pós-concílio, as atenções renovadoras se voltaram para a Igreja em si mesma. Aos poucos, porém, se foi percebendo que a mudança era mais radical e brotava da maneira de entender as fontes da Igreja, a comunicação da vida de Deus, a revelação e, portanto, a fé.

Passou-se então a focalizar a fé como ato pessoal de adesão a Deus, no acolhimento de sua Palavra, no Espírito e não apenas como acolhimento de verdades a respeito de Deus.

Os dois últimos sínodos, de 2008 sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja e de 2012, sobre a nova evangelização para a transmissão da fé cristã, são testemunhos inequívocos dessa evolução, marcada com ênfase ainda maior no ato de crer, pelo Ano da Fé, proclamado pela Carta Apostólica Porta Fidei, de Bento XVI.

Ora, ressaltar o papel fundamental da Palavra comunicadora da Vida é pôr em evidência a ação evangelizadora de Jesus, que passa a ser considerada como o parâmetro da ação evangelizadora da comunidade cristã e de cada fiel pessoalmente, da Igreja. Essa orientação é um dos aspectos centrais da compreensão da Igreja em nossos dias. Foi, por isso, tema fundamental do Sínodo de 2012.

Quando se fala de “nova evangelização” – nos dois sentidos do adjetivo nova, como reativação do “novo testamento” e atualização, em vista das circunstâncias em que vive hoje a humanidade e os próprios cristãos – deve-se voltar a Jesus, Palavra de Deus encarnada, que constitui a eterna e perene novidade na história dos homens.

Voltar à Palavra encarnada é voltar a Jesus, pois:

“a fé cristã não é somente uma doutrina, uma sabedoria, um conjunto de regras morais, uma tradição: é o encontro real, a relação pessoal com Jesus Cristo [..] O objetivo de toda a evangelização é a realização deste encontro, que é ao mesmo tempo íntimo e pessoal, público e comunitário” (Instrumentum laboris, 18).

Este encontro com Jesus, graças ao seu Espírito, é o grande dom do Pai aos homens:

– Encontro para o qual somos preparados pela ação da sua graça em nós.

– Encontro no qual nos sentimos atraídos, e que, enquanto nos atrai, transfigura-nos, introduzindo-nos em dimensões novas da nossa identidade, fazendo-nos participantes da vida divina (Cf. 2Pt 1,4).

– Encontro que não deixa nada como antes, mas assume a forma da “metanóia”, da conversão, como o próprio Jesus pede com ardor (cf. Mc 1,15). A fé como encontro com a pessoa de Cristo constrói-se na relação com Ele, na memória d’Ele […] e cria em nós a mentalidade de Cristo, na graça do Espírito; uma mentalidade que nos faz reconhecer como irmãos, reunidos pelo Espírito na sua Igreja, para sermos, no nosso meio testemunhas e anunciadores deste Evangelho.

– Encontro que nos torna capazes de fazer coisas novas e de testemunhar, graças às obras de conversão anunciadas pelos Profetas (cf. Ger 3,6ss.; Ez 36,24-36), a transformação da nossa vida (Inst.Lab. 19).

A seleção desses quatro aspectos do encontro com Jesus no Espírito aponta para os fundamentos teológicos da evangelização dos quais é preciso sempre partir e ter presentes como critério da autenticidade da ação evangelizadora da Igreja, fundada na ação evangelizadora de Jesus.

Voltar-se para Jesus considerado na realização de sua missão como Verbo encarnado, “como cristãos e como comunidade é abeirar-nos da fonte da nossa fé, e estarmos assim mais disponíveis para a evangelização, para o testemunho. De fato, antes de se transformar em ações, a evangelização e o testemunho são fruto do crer que  continuamente nos purifica e converte” (Instr. Lab. 20).

Na “origem e na fonte” da evangelização está, pois, “Jesus, o Evangelizador”.

“O testemunho unânime dos evangelistas confirma que o Evangelho de Jesus é o recomeço radical, a prossecução e o cumprimento total do anúncio das Escrituras.

Precisamente, em virtude dessa continuidade, a novidade de Jesus aparece ao mesmo tempo evidente e compreensível. Sua ação evangelizadora é, de fato, o retomar de uma história iniciada anteriormente […].

Considerando a profundidade desta relação com as Escrituras presentes no coração do povo, Jesus mostra-se como o evangelizador que conduz a Lei, os Profetas e a Sabedoria de Israel, à novidade e à plenitude” (Inst Lab.22).

O perfil da ação evangelizadora de Jesus

A ação evangelizadora de Jesus se revela na narrativa de Lucas a propósito dos chamados discípulos de Emaús, a quem o “dom supremo […] é exatamente ‘abrir-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras’ (Lc 24,45)” (Ib.), como nos lembra o Instrumentum Laboris:

“Para Jesus, a evangelização assume a missão de atrair os homens para a sua íntima relação com o Pai e o Espírito. É este o sentido último da sua pregação e dos seus milagres: o anúncio de uma salvação que manifestando-se, através de ações concretas de cura, não pode coincidir com uma vontade de transformação social ou cultural, mas é a experiência profunda concedida a todo homem de se sentir amado por Deus e de aprender a reconhecê-Lo no rosto de um Pai amoroso e cheio de compaixão” (cf. Lc 15) (Inst. Lab. 23).

Não deixa de ser importante que o Instrumentum Laboris, no que foi seguido por um número importante de padres sinodais, insista no significado interior da ação evangelizadora de Jesus, sublinhado pelos encontros pessoais que marcaram sua trajetória:

“A arte de Jesus de conviver com os homens é considerada como elemento essencial do método evangelizador de Jesus. Ele foi capaz de acolher a todos, sem discriminação nem exclusões: em primeiro lugar os pobres, depois os ricos como Zaqueu e José de Arimateia, os estrangeiros como o centurião e a mulher siro-fenícia; os homens justos como Natanael, ou as prostitutas, os pecadores públicos, com os quais esteve à mesa.

Jesus sabia chegar ao íntimo do homem e gerá-lo na fé em Deus que, acima de tudo, ama (cf. 1Jo 4,10.19), cujo amor nos precede sempre e não depende dos nossos méritos, porque é a sua própria essência: «Deus é amor» (1Jo 4,8.16). Ele torna-se assim modelo para a Igreja evangelizadora, mostrando-lhe o fundamento da fé cristã: acreditar no amor mediante o rosto e a voz deste amor, isto é, através de Jesus Cristo” (Inst. Lab. 23).

A importância desse critério de relação pessoal de Jesus conosco, apelando para uma resposta pessoal nossa, leva o texto à sua conclusão, que comporta verdadeiro traçado do perfil de Jesus evangelizador:

“A evangelização de Jesus conduz naturalmente todo o homem a uma experiência de conversão: cada homem é enviado a converter-se e a acreditar no amor misericordioso de Deus por ele. O reino crescerá na medida em que cada homem aprender a voltar-se para Deus na intimidade da oração como um Pai (cf. Lc 11,2; Mt 23,9) e, à luz do exemplo de Jesus Cristo, a reconhecer em plena liberdade que o bem da sua vida é o cumprimento da sua vontade (cf. Mt 7,21).

Evangelização, chamamento à santidade e à conversão relacionam-se como se fossem uma só coisa para introduzir aqui e agora, à experiência do Reino de Deus em Jesus, àqueles que se tornam à sua volta filhos de Deus” (Instr. Lab. 24).

A ação evangelizadora de Jesus tinha, pois, como objetivo imediato e como meta final, a intimidade com Deus, experiência pessoal a ser efetivamente vivida por todo aquele que crê. Experiência compartilhada na Igreja, a comunidade animada pelo Espírito de Jesus, e sinal da vocação à santidade, decorrente da universalidade da salvação, como o desenvolve o capítulo quinto da Constituição Lumen Gentium.

Referências

Nossas reflexões se fazem em continuidade com os documentos do Vaticano II, com a Exortação Apostólica de Paulo VI (1975), o InstrumentumLaboris da XIII Assembleia Ordnária do Sínodo do Bispos, sobre a Nova Evangelização e a transmissão da fé cristã (2012) e as Proposições do mesmo Sínodo, oficiosamente publicadas em inglês.

Tags:
BíbliaevangelhoJesus
Top 10
Ver mais
Boletim
Receba Aleteia todo dia