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O maravilhamento e o sentido do Natal

VIERGE MARIE

© Pascal Deloche / Godong

Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 26/12/21

A sabedoria cristã repete, a cada ano, que o Natal não é apenas um acontecimento ocorrido na Palestina, há dois mil anos. Ele acontece sempre, em todos os lugares do mundo, na vida de cada cristão

“A crença em Deus não muda realmente a vida. É outra coisa que muda a vida. Se a crença em Deus mudasse a vida, não teria sido necessário que Maria desse à luz”. O trecho, para a maioria de nós, oscila entre o óbvio e o escandaloso. Num obituário do autor, o padre italiano Giacomo Tantardini (1946-2012), um de seus grandes amigos, o então Cardeal José Mário Bergoglio, escreveu: “ele deixou as pegadas de um homem-menino que nunca deixou de se maravilhar. Dom Giacomo, o homem do maravilhamento; o homem que se deixou maravilhar por Deus”. As duas citações se completam e nos ajudam a perceber melhor as dificuldades que a mentalidade moderna cria para experimentarmos o mistério de Deus em nossa vida.

É obvio que não é a crença em Deus que muda a nossa vida (no sentido de vivermos a Novidade evangélica). Os fariseus eram modelo de pessoas que acreditavam em Deus; terroristas fanáticos morrem por acreditar em Deus; na história, não faltam exemplos de homens maus que acreditavam em Deus – alguns até usaram sua crença para justificar suas maldades. Ao mesmo tempo, porém, não se pode negar um empenho moral para com o bem por parte das pessoas de fé. Crer em Deus, normalmente, nos faz querer ser melhores. Daí que o pensamento acima nos escandalize sobre certo aspecto.

O maravilhamento do homem-menino

O pensamento de Tantardini se ilumina a partir do comentário de Bergoglio. Quando acontece a mudança de vida radical, proposta por Cristo, nos maravilhamos pela presença de Deus em nossa vida. É o fascínio diante da constatação da obra de Deus que nos move em direção a Ele. A crença racional tem seu valor, como veremos adiante, mas não se compara à maravilha da própria presença de Deus no mundo.

Para nós, filhos da mentalidade moderna, é difícil entender essas coisas. Educamos e fomos educados – mesmo que não desejássemos – numa mentalidade antropocêntrica, onde a consciência individual é a medida de todas as coisas, até mesmo de nossa adesão a Deus. Aprendemos a nos orientar por valores como a autonomia e a independência pessoal, a racionalidade, a responsabilidade individual, a tenacidade. São todos valores justos e bons, em nossa relação com os outros seres humanos e as coisas do mundo. Porém, a relação com Deus acontece numa outra lógica, a da dependência, da impotência, da surpresa, do pedido, da gratuidade e da misericórdia.

Numa postura justa, os dois conjuntos de valores se complementam. Aquele que depende de Deus se torna autônomo em relação aos poderes do mundo, a constatação da própria impotência gera a coragem para se lançar nos arrojados empreendimentos do Amor, a gratidão pela misericórdia se manifesta como responsabilidade pessoal. Contudo, o que acontece frequentemente é uma interpretação antropocêntrica da própria fé, na qual a crença em Deus e a coerência com os valores da fé é que parecem fazer a diferença. Nessa visão reduzida, o que transforma a vida e o mundo não é a graça que age no ser humano visitado por Deus, mas sim a vontade e a coerência de um ser humano confrontado por normas supostamente emanadas da Divindade.

Era contra essa redução da experiência cristã que se rebelava o “homem-menino” Tantadini, repleto de maravilhamento e fascínio, que impressionou o Cardeal Bergoglio.

O exemplo dos casais apaixonados

O matrimônio nos ajuda a entender essa relação entre o maravilhamento e os valores da fé. A crença na indissolubilidade do matrimônio pode nos ajudar a não fazer alguma besteira ainda maior num momento de crise conjugal. Mas não é ela, em si, que salva um matrimônio e o torna feliz. Um casamento sustentado apenas por essa crença se torna um longo e penoso calvário. O valor desse sacrifício é enorme, mas não é aquilo que desejamos para nós mesmos ou para aqueles que amamos. É a graça – que vem de forma surpreendente, nos encontros interpessoais, na vida sacramental, no olhar atento para a realidade e para os dons de uma vida compartilhada – que faz com que se redescubra, no outro, aquele fascínio e aquela beleza que um dia encantou aos cônjuges.

Numa crise, a crença na indissolubilidade do matrimônio nos ajuda na medida que nos põe numa postura de confiança no sacramento, de pedido e espera pela ação da graça, que nos impede de fazer erros ainda maiores. Mas são a graça e a própria presença do outro que nos permitem recuperar a beleza do casamento. Aliás, a crença na indissolubilidade do matrimônio poderia até se tornar um empecilho à ação da graça do sacramento, se um cônjuge pensasse que, como o casamento é indissolúvel, não precisava mais se dedicar ao bem do outro, a fascinar e cativar, a cada dia, a pessoa amada.

Assim é com todas as coisas da fé. Os valores, e nossa adesão a eles, são muito importantes. Mas, em última análise, é a presença objetiva de Deus que vem até nós que dá sentido e gosto à nossa vida.

O fascínio do Natal

A sabedoria cristã repete, a cada ano, que o Natal não é apenas um acontecimento ocorrido na Palestina, há dois mil anos. Ele acontece sempre, em todos os lugares do mundo, na vida de cada cristão. A consciência desse encontro fascinante, dessa experiência de amor e maravilhamento, nos dá a força necessária para mudarmos nossa vida, “fazermos as coisas certas”. É Jesus, que veio e que continua vindo em nossa vida, que traz o gosto de vida nova, o sabor e o sentido que buscamos para nossa existência.

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AmorJesusNatalSentido da vida
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