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O transatlântico da esperança e os barquinhos das expectativas

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 13/06/21
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A mentalidade do mundo nos quer em nossos barquinhos, a vivência da fé nos convida a navegar em um transatlântico

Depois de 20 séculos de história, a civilização cristã frequentemente se vê diante de alguns equívocos que passam desapercebidos. Como nossa tradição cultural está fortemente plasmada pelo cristianismo, acreditamos que certas ideias determinadas pela mentalidade “do mundo” são cristãs – quando há muito deixaram de sê-lo (ou até mesmo nunca foram). Essas ideias “fora do lugar” se tornam grandes obstáculos tanto para o anúncio evangélico quanto para nossa caminhada ascética pessoal.

Uma dessas ideias distorcidas é o conceito de esperança. Quem quiser um bom aprofundamento teológico do tema, deve ler Spe salvi (Salvos pela esperança), uma grande encíclica de Bento XVI. Quem quiser uma visão poética do tema, leia Os Portais do Mistério da Segunda Virtude, de Charles Peguy (Lisboa: Paulinas, 2014). Mas a questão aqui não é tanto discorrer sobre a esperança cristã e sim mostrar como nossa visão corriqueira de esperança está distante do verdadeiro conceito cristão. E essa distância é um dos fatores que leva os não cristãos a pensar que nossa esperança é apenas uma ilusão a mais, o famoso “ópio do povo”, da crítica marxista.

Encontrar as palavras corretas é uma parte importante dessa reflexão, para descobrir o real sentido de certos termos na linguagem cristã. Normalmente, o que as pessoas chamam de “esperança” é muito diferente do que o magistério da Igreja quer dizer com essa palavra. Comparativamente, seria melhor dizer que as “esperanças” do mundo são, na verdade “expectativas de que nossos desejos se realizem”.

Quando pensamos que temos esperança de conseguir um bom emprego, de ficarmos curados, de que o filho rebelde se converta, de superarmos a pandemia, de que os corruptos sejam condenados ou que os pobres não sofram tanto, estamos formulando desejos e expectativas. Todos esses exemplos se referem a coisas boas. É justo, inclusive, que rezemos a Deus para que se realizem. Pedimos para que Deus realize nossas expectativas, em primeiro lugar. Contudo, “não sabemos o que pedir, nem como pedir; é o próprio Espírito que intercede em nosso favor, com gemidos inefáveis. E aquele que penetra o íntimo dos corações sabe qual é a intenção do Espírito. Pois é sempre segundo Deus que o Espírito intercede em favor dos santos. Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação, de acordo com o projeto de Deus” (Ro 8, 26-28).

Esse trecho da Carta aos Romanos explicita bem a dinâmica que vincula nossas expectativas à esperança cristã. Pedimos o que nos parece melhor, recebemos o que Deus sabe ser melhor para nós. Se pensamos nossa relação com Ele numa lógica mercantilista, na qual “compramos” o que queremos com nossas orações e nosso bom comportamento, teremos que reconhecer que nossa esperança é ilusória em grande número de ocasiões. Se fosse assim, todos os bons cristãos que morreram jovens, vítimas de Covid-19, seriam um sinal de que Deus não existe. Muita gente perdeu a fé por situações assim. Mas a esperança cristã não é assim. “Tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus”... Não se trata da realização desse ou daquele pedido específico, mas da experiência de que em tudo o amor por nós se manifesta, algumas vezes realizando as expectativas, outras vezes consolando nas frustrações, sempre abrindo nossos horizontes para uma Novidade inimaginável antes.

Cada um de nós, tem expectativas, e isso não é mal – mas elas não são esperanças reais. A esperança é uma só: que a Misericórdia se manifeste, de forma maravilhosa, em nossa vida. Dito em outras palavras, que a morte não seja a última palavra sobre a nossa vida.

Um dia, ao nos despedirmos de nossos filhos, ao ir para o trabalho, percebemos que essa pode ser a despedida final de nossa vida, pois muitos saem de casa para ir trabalhar e não voltam... Ou vemos aquela pessoa querida prostrada numa cama de hospital e nos aterrorizamos com a possibilidade de nunca mais podermos falar com ela, segurar sua mão... Ou perdemos aquele emprego tão bom, e ficamos sem saber quando e como voltaremos a ter um trabalho digno e uma remuneração justa. São experiências dramáticas, que todos nós fazemos algum dia.

Elas nos ajudam a entender o que é realmente a esperança. Não se trata apenas de ter a expectativa de que as coisas se resolvam conforme gostaríamos, mas aquela confiança de que, de um modo ou de outro, o bem irá prevalecer. Essa confiança não nasce de uma fé voluntarista, não é a “força do pensamento positivo” disfarçada. Ela nasce de uma fé experimentada, da constatação de que Ele nos acolheu e nos protegeu ao longo de nossa vida e não deixará de fazer isso no futuro. Como diziam os samaritanos à samaritana: “agora não acreditamos apenas porque você nos disse, mas porque nós mesmos O vimos e ouvimos” (cf. Jo 4, 42).

A esperança, ao transformar a nossa vida, dá uma sensação como a vertigem que temos no pico da montanha, ao olhar o abismo mais abaixo. Não é a expectativa de que as coisas irão dar certo. A esperança supera as expectativas porque se impõem com sua grandeza. Não com pretensão ou superioridade... A esperança é como um transatlântico, que só por navegar em seu curso, cria ondas que varrem do mar os barquinhos de nossas expectativas. Aí, depende de nós: podemos escolher navegar no transatlântico ou naufragar em nossos barquinhos. A mentalidade do mundo nos quer em nossos barquinhos, a vivência da fé nos convida a navegar no transatlântico.

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