Nas místicas medievais, em especial nas de tradição cisterciense – Ordem monástica fundada em 1098, em Cister, na França –, aparece a devoção à humanidade de Cristo centrada, sobretudo, no Coração de Jesus.
Vemos que “já na vida de Santa Lutgarda, nos é narrada a primeira aparição do Coração de Jesus traspassado, mas é com Santa Gertrudes que a devoção ao Coração de Jesus se sobressairá. De fato, para Gertrudes, o Coração de Jesus é o próprio Jesus revelando ao ser humano “o mais oculto dos segredos”; isto é, uma inteligência maior e mais profunda de sua intimidade mais íntima, que não é senão a superabundância e a maravilha de seu amor-ternura (Pietas). O coração como símbolo do amor de Cristo é um lugar soteriológico, onde a mística possui plena experiência de Deus e de sua infinita ternura encarnada. Espaço onde as místicas querem perder-se e ser encontradas” (VV. AA. A mulher, a monja e a mística cisterciense. São Paulo: Cultor de Livros, 2019, p. 78-79). Eis algo sobre duas dessas místicas: Santa Lutgarda e Santa Matilde de Hackeborn.
Lutgarda de Aywières, ao contrário de Matilde, nada escreveu, mas deixou-nos o relato de uma marcante experiência mística. Sim, essa monja trazia em si – por devoção a Santa Inês – forte desejo de morrer mártir, ou seja, de derramar o seu sangue por Cristo. “Ora, uma noite, estava no dormitório e rezava junto ao leito antes de repousar, quando a ideia do martírio se lhe apresentou ao espírito. Lembrou-se de Santa Inês. Foi tomada por um desejo tão veemente e inflamado de morrer por Cristo, como a virgem mártir de Roma, e o ímpeto de seu amor tornou-se de tal maneira forte, que a poderia ter matado naquela hora. Uma veia rompeu-se perto do coração e por uma larga ferida aberta no lado, o sangue começou a jorrar, inundando-lhe a túnica e a cogula. Lutgarda caiu sem sentido ao solo e Cristo, em toda a sua glória, com a face reluzente de júbilo, apareceu-lhe” (Thomas Merton. O que são essas chagas? Campinas: Ecclesiae, 2017, p. 159).
De Matilde citaremos, aqui, a título de ilustração, algumas passagens. Desde a infância, esta santa recebeu revelações dos segredos divinos e um deles diz respeito ao Sagrado Coração de Jesus, que Nosso Senhor não só lhe apresentou, mas também colocou no peito de sua santa esposa. Eis uma descrição: “Na quarta-feira da Semana de Páscoa, ouvindo na Missa as palavras Venite benedicit Patris mei, sentiu-se possuída por deliciosa e extraordinária alegria e disse a Nosso Senhor: ‘Oxalá seja eu uma das benditas almas a ouvirem essas doces palavras de Vossos lábios!’ Nosso Senhor respondeu: ‘Podes ficar bem certa de que o serás, e como prova dou-te o Meu Coração para guardá-lo e só me restituíres quando Eu houver realizado o teu desejo. Dou-te o Meu Coração como lugar de refúgio; à hora da morte será impossível te desviares para outro caminho; terás somente o Meu Coração onde repousar eternamente” (Padre Granger. O amor do Sagrado Coração explicados segundo os escritos de Santa Mechtilde. Renânia: Typ. Butzon & Bercher, 1928, p. 15-16).
Ainda, o Sagrado Coração de Jesus revela a sua infinita misericórdia para com o pecador que se arrepende: “Quando o pobre coração humano, contrito e partido pela dor, exclama: ‘Eu me levantarei e irei a meu Pai’, o Sagrado Coração estremece de alegria. Digo-te, por maiores que houverem sido os seus pecados, nesse mesmo instante, se o arrependimento for sincero Eu os perdoo todos e o Meu Coração inclina-se com tanta misericórdia e doçura como se nunca tivesse pecado”. Ouvindo isso, Santa Matilde exclamou: “Ó profundeza verdadeira insondável! Ó profundeza de vossa sabedoria e misericórdia!” (Idem, p. 87).
Também os sofrimentos são acompanhados de perto por Nosso Senhor em seu Sagrado Coração. Com efeito, diz Cristo a Santa Matilde: “Quando estás doente, Eu te seguro com o Meu braço esquerdo e quando estás bem com o direito; mas lembra-te que ao segurar-te o braço esquerdo ficas muito mais perto de Meu Coração” (Ibidem, p. 127).
Eis alguns aspectos do amor ao Sagrado Coração de Jesus a inflamar as místicas cistercienses do século XIII.