A história de Lázaro Barbosa, o serial killer que aterrorizou o interior de Goiás (Brasil), até ser morto pela polícia em 28 de junho, será sempre chocante para todos nós. O assassino que mata aparentemente sem compaixão nem motivos claros representa – em nosso imaginário – a própria personificação do Mal e do terror. Tratava-se de um psicopata e as relações de seu transtorno mental com a doutrina católica já foram abordadas em Aleteia, num artigo de Francisco Vêneto.
O assassino foi morto, para muitos foi um alívio. Ainda que pese uma suspeita de execução sumária, não se pode deixar de pensar na situação dos policiais diante de um homem que os mataria sem a menor consideração. Se não tivesse morrido, Lázaro provavelmente passaria o resto da vida em uma instituição psiquiátrica. Mas e as vidas que ele tirou? E as feridas psicológicas que deixou em tantas pessoas? Que justiça pode ser feita às vítimas?
Diante de episódios como esse, nos deparamos com as limitações inerentes à justiça humana. Ao longo da história, os seres humanos quase sempre imaginaram o exercício da justiça, diante de um delito, como ato punitivo. O criminoso deve pagar por seus crimes. A satisfação dada à vítima se confunde com vingança, da qual muitas vezes só se distingue pela punição ser aplicada pelo Estado e não pelo indivíduo.
A punição é necessária. Deve ser exemplar, não no sentido de excessivamente cruel, para amedrontar os possíveis criminosos, e sim no sentido de ser proporcional ao delito cometido e de acontecer sempre. A impunidade é sempre um estímulo ao mal e uma afronta às vítimas, por isso não deve ser tolerada. Mas, realizada a punição, o mal permanece feito, as perdas e o sofrimento continuam presentes. Por isso, as concepções mais recentes falam de uma justiça restaurativa, cujo objetivo maior não é o de punir o infrator, mas sim reparar os danos que ele causou à vítima, à sociedade e, em última análise, a ele mesmo. Numa postura restaurativa, é tão importante apoiar as vítimas quanto condenar os culpados. As penas devem existir, mas serem pensadas de modo a ajudar o condenado a se arrepender e se tornar um cidadão útil – e não simplesmente castigá-lo.
No caso de uma falcatrua financeira ou do roubo de um objeto, a reparação da vítima não é tão difícil – basta que o valor retorne a seu legitimo dono. No caso, por exemplo, de um corrupto que dissipou em obras inúteis o dinheiro público que deveria ir para a construção de uma escola, pode ser mais difícil. Mesmo que o corrupto devolva aquilo que ganhou ilicitamente e pague do próprio bolso a construção da escola, não conseguiremos fazer o tempo voltar, os adultos que deixaram de estudar não terão sua infância revivida. E se um motorista embriagado, dirigindo com velocidade, atropela um grupo de crianças e as mata? Que reparação pode a justiça humana dar para as vidas ceifadas e para as famílias enlutadas?
A justiça restaurativa é um grande avanço em relação à justiça meramente punitiva. Contudo, se queremos ser honestos conosco mesmo, temos que reconhecer as limitações de nossa justiça. Temos que passar por aquela experiência de absurdo, no qual a impotência supera a raiva, no qual percebemos a vanidade dos esforços para eliminar o mal só com nossas forças. Nessa passagem, o coração se purifica, a ternura supera a raiva, a oração toma o lugar da violência – e um novo horizonte se abre para a justiça.
“Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus pensamentos, e se converta ao Senhor, que se compadecerá dele; torne para o nosso Deus, porque grandioso é em perdoar. ‘Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos’, diz o Senhor. ‘Assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos [...] Assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei’.” (Is 55, 8-11).
Só Deus pode satisfazer à ânsia mais profunda de justiça que existe em nosso coração. No seu “Auto da Compadecida”, obra recheada pela sabedoria religiosa do povo, Ariano Suassuna coloca o cangaceiro matador, Severino de Aracaju, diretamente no céu, enquanto os demais personagens – inclusive um bispo e um padre – vão para o purgatório. É que Deus (e, no caso, Nossa Senhora) conhece o coração e julga com base no íntimo da pessoa e não nas evidências exteriores. Severino se tornara violento por só ter conhecido a violência em vida. Os demais, contudo, sempre haviam tido a oportunidade de escolher entre o bem e o mal. Daí a conclusão de seu julgamento ser mais rigorosa. Os males cometidos por Severino não se tornaram bons pela sua história pessoal. O mal continua sendo mal, mas Deus perdoa.
Não seria possível aceitar a justiça de um Deus que é misericórdia e perdão sem a experiência de que Ele do mal pode fazer surgir um bem, como lembra o Catecismo (cf. CIC 310-314). É difícil de acreditar que todos os males possam ser transformados em bem. Sem dúvida é uma promessa que nos é feita, algo em que cremos com esperança – mas a experiência de que o bem, a beleza e o amor brotam de situações de pecado, de sofrimento e de dor alimenta essa fé e essa esperança. Acreditamos em algo infinitamente maior porque vimos maravilhas semelhantes, ainda que muito menores, acontecerem em nossas vidas – ou conhecemos o testemunho de pessoas que viveram essas experiências da ação de Deus no mundo.
Essa é a única justiça que pode satisfazer o coração do ser humano. E só a partir dela nossa limitada justiça humana pode encontrar sua verdade.
O efeito mais evidente dessa metamorfose da justiça humana é que ela passa a existir como gesto de perdão – e não de vingança. A punição continua sendo necessária, não se trata de defender a impunidade... Mas a própria vítima percebe que o perdão pode abrir seu coração e o do ofensor para um amor maior, de forma que um bem já começa a nascer daquele mal cometido. Muitas vezes é um pequeno bem, comparado com o tamanho do mal. Mas é uma semente que prenuncia uma grande árvore que Deus fará crescer. Não elimina a tristeza e a necessidade de punição, mas as remete a um outro horizonte, muito mais condizente com as exigências mais profundas do ser humano.
Num mundo que se deixa frequentemente determinar pela raiva, onde o amor parece distante, o cristianismo nos convida a ver casos como o de Lázaro Barbosa como ocasião para nos voltarmos mais para a justiça de Deus e nos afastarmos de uma justiça punitiva que não pode nos salvar.