Há muito tempo, num debate acadêmico, fui provocado a provar que haveria uma verdade que não fosse relativa, que não dependesse da posição de cada um. Pedi para que as pessoas na sala que não quisessem ser felizes levantassem a mão. Ninguém levantou... Respondi a meu interlocutor que a afirmação de que todos os seres humanos querem ser felizes era uma verdade absoluta. Uma professora me contestou, dizendo que dependia do que cada um entendesse por “ser feliz”. Concordei com ela e refiz a frase: “todos querem ser felizes, ainda que cada um procure ser feliz a seu modo”. Acrescentei que, a partir daquele ponto, se abria a possibilidade de um verdadeiro diálogo. Tínhamos um ponto de chegada em comum, e poderíamos dialogar para comparar nossos caminhos e aprender juntos o que é a verdadeira felicidade e como alcançá-la.
Tal como acontece com a esperança (que foi tema de um artigo anterior), também a felicidade é um anseio de todos os seres humanos e um dom que Deus nos dá, mas que frequentemente não entendemos, nem acolhemos, porque o vemos com os olhos “do mundo” e não com aqueles “da fé”. Mas essa é a grande disputa de sentido na sociedade contemporânea – aliás, em todas elas, ainda que a nossa seja provavelmente aquela na qual essa questão seja mais gritante. Em História da Morte no Ocidente (Rio de Janeiro: Ediouro, 2003), Philippe Ariès escreveu que existe, na sociedade atual, “a necessidade da felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando toda causa de tristeza ou de aborrecimento, mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estamos no fundo da depressão”.
O Papa Francisco tem bem claro essa característica de nosso tempo. Não por acaso, o documento considerado como apresentação de sua proposta para a Igreja, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG), inicia-se com essas palavras: “A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus [...] Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria” (EG 1). Essa “alegria do Evangelho” não é outra coisa que não a verdadeira felicidade cristã.
Acreditamos frequentemente que a luta do cristianismo no mundo é um confronto entre valores, que a nossa coerência moral é o diferencial entre os bons cristãos e os demais. Temos a ilusão de que as pessoas acreditarão mais em Cristo porque nós somos mais coerentes. A coerência é sempre muito importante, mas não é o verdadeiro diferencial. Se o problema fosse a coerência, Jesus teria se cercado de bons fariseus e não de pescadores infiéis na hora decisiva, como Pedro, ou cobradores de impostos, como Mateus. As pessoas seguem a Cristo porque se sentem amadas e/ou porque percebem a felicidade dos cristãos...
Quando um grupo de jovens de sua diocese estava para vir ao Brasil como missionários, um velho bispo italiano disse a eles: “Só posso desejar que vocês, ao chegarem na minha idade, tenham sido tão felizes quanto eu”. Uma pessoa tão feliz, tão saciada daquilo que dá sabor à vida que não consegue desejar mais nada além do que já tem, que não consegue imaginar que outros possam ter mais felicidade, tão grande é a sua. Não era uma frase de prepotência, não se tratava da “obrigação de ser feliz” aludida acima por Ariès. Tratava-se do singelo reconhecimento de uma graça recebida.
Quando um postulante deseja se tornar monge beneditino, na cerimonia de sua entrada no mosteiro, o abade deve perguntar: “existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes?” e o postulante deverá responder “eu”. Trata-se de um trecho da Regra de São Bento, onde se diz que Deus busca o seu operário na multidão. Comentando essa passagem, o Abade Mauro Lepori diz que Deus procura “seu operário”, como alguém para o qual já estabeleceu uma tarefa, mas a condição necessária para responder ao seu chamado não são atitudes, capacidades ou qualidades mas, simplesmente, o desejo da vida e da felicidade, o desejo da plenitude. Parece tão simples! Por que será que a felicidade e a conversão são tão difíceis?
O primeiro problema que enfrentamos é que a felicidade, para nós, parece corresponder à realização de um projeto nosso. Seremos felizes quando fizermos isso ou aquilo, quando tivermos tais e tais coisas. Os mais prosaicos entendem a felicidade como ter bens, os mais sofisticados com disfrutar de muitos prazeres – mas sempre é um projeto humano que define quais bens ou prazeres são necessários e de que forma devem ser conquistados. Ora, qualquer pessoa honesta consigo mesmo já se surpreendeu desejando coisas que, depois de conseguidas, não se mostraram à altura das expectativas. Pior ainda, quando olhamos com cuidado vemos que essas coisas e esses prazeres não são nem mesmo o que desejamos por nós mesmos, são projetos que a mentalidade hegemônica nos impõe e aos quais aderimos sem nem mesmo nos aperceber.
Mas não é só isso! No fundo, temos medo de que a verdadeira felicidade não possa se realizar. Existe tanta dor, tanto sofrimento no mundo... Como pode haver um Deus bom, se todas essas coisas más acontecem? Algumas pessoas excepcionais, por capacidade ou por sorte, talvez consigam aquilo que almejam, mas nós – que somos semelhantes aos demais, talvez só um pouco melhores, talvez nem isso – não podemos almejar a tanta felicidade. Entre o risco de não alcançar a satisfação plena e a segurança das pequenas satisfações, certas ainda que frustrantes, preferimos a segurança à plenitude. Não nos entregamos nas mãos de Deus – e chamamos nosso medo de prudência.
É difícil definir o que é felicidade. Ela, de fato, se manifesta de modos diferentes para cada um de nós. Mas os felizes sabem o que é a felicidade e os cristãos sabem que ela sempre chega misteriosa e surpreende, parecendo quase que acusar-nos de não sermos dignos de tanta Graça. Esse é o testemunho mais decisivo que podemos dar ao mundo, aquele que pode ajudar os mais céticos, se sinceros consigo mesmo, a encontrar a Cristo.