Na moderna civilização ocidental, construída sobre as bases do cristianismo, encontramos uma situação paradoxal: a cultura hegemônica parece orientar-se pela negação dos valores cristãos, que estão sujeitos a um processo de cancelamento social, denominado pelo Papa Francisco de “perseguição educada”. O pontífice explica: “o homem é perseguido não por confessar o nome de Cristo, mas por desejar ter e manifestar os valores de filho de Deus. Por conseguinte, é uma perseguição contra Deus Criador na pessoa dos seus filhos. E assim vemos todos os dias que os poderes fazem leis que obrigam a ir por este caminho e uma nação que não segue estas leis modernas, cultas, ou pelo menos que não quer tê-las na sua legislação, é acusada, perseguida educadamente. É a perseguição que priva o homem da liberdade, inclusive da objeção de consciência! Deus criou-nos livres, mas esta perseguição tira-nos a liberdade! E se não fazes isto, serás punido: perderás o trabalho e muitas outras coisas ou serás posto de lado”.
Esta perseguição educada é a causa de um ressentimento que muitas vezes acomete os cristãos, já comentado em outro artigo. Cria-se, nessa situação, uma dupla ameaça a um verdadeiro cristianismo. Uma externa, representada pelas perseguições e pelo cancelamento cultural, que procura nos impedir de manifestarmos nossos valores, e outra interna, representada por esse ressentimento que nos atormenta e enche de raiva, afastando-nos do maior valor cristão que é o amor.
Dirigidos pelo ressentimento e pela raiva, que são maus conselheiros, tendemos a pensar que o problema é o poder econômico ou político dos grupos laicistas, a força de suas campanhas anticristãs, seu acesso aos grandes veículos de comunicação. Imaginamos então que poderemos vencê-los usando da mesma violência da qual somos vítimas. Com isso, nos afastamos mais ainda do amor cristão. Quem usa as estratégias do demônio, acaba servindo ao demônio, não a Cristo.
Para não errarmos combatendo o mal com estratégias más, temos que entender o mecanismo que rege essas mudanças culturais, que criaram novas hegemonias e viabilizaram o cancelamento social dos cristãos. Temos de lembrar que essas posições contrárias ao cristianismo – hoje majoritárias em muitos ambientes – no passado não tinham esta força, nem este acesso às mídias sociais. Então, como se tornaram hegemônicas?
A hegemonia cultural se manifesta como a capacidade de ditar um pensamento único nos meios de comunicação e nos espaços educativos da sociedade. Mas ela começa por um exercício de convencimento, realizado quando ainda se está numa posição inferiorizada no debate cultural. “Usam a mentira para convencer os jovens!” – diremos instintivamente. Em parte, mas a mentira tem pernas curtas, como diz o ditado popular. Ela não se sustenta ao longo da história, por si só não é forte para garantir a mudança do paradigma cultural em uma sociedade.
Na verdade, esse processo de convencimento é construído em cima de nossas contradições, daquelas ocasiões em que dissemos uma coisa e fizemos outra, em que pregamos o amor e agimos segundo critérios que não nasciam do amor – ou até nasciam, mas não conseguimos mostrá-los como frutos do amor.
Os que praticam essa “perseguição educada” também têm suas contradições, mas não se percebem numa unidade como a dos cristãos. Se um professor é denunciado por pedofilia, os demais não se sentem constrangidos por isso, apenas o condenam e dizem que não são iguais. Mas, se um padre é acusado de pedofilia, todos nós, católicos, nos sentimos tristes e constrangidos...
Sempre me impressiona, por exemplo, a descrição virulenta que certos ideólogos fazem da vida em família. Parece-me um inferno, dominado por homens violentos, que submetem pela força esposas submissas, filhos e filhas infelizes. Essas descrições ideológicas não teriam se firmado se não houvesse famílias assim e se não perdêssemos muitas vezes a capacidade de dar as razões de nossos comportamentos e de nossas convicções. Os discursos contrários à família mais convincentes são proferidos por quem vêm de famílias horríveis – algumas das quais escondem suas mazelas embaixo de uma suposta moral cristã irretocável.
Outro exemplo é o da “opção pelos pobres”. Já Leão XIII, na Rerum Novarum, de 1891, ensinava que os pobres sofriam com as injustiças sociais e que os cristãos tinham o compromisso moral de combater essas injustiças, procurando colaborar para que todos tivessem condições de vida dignas. Mais: já observava que o comunismo ateu crescia justamente aproveitando-se dessa situação de injustiça. Mas, ainda hoje, muitos cristãos querem combater o comunismo sem assumir um compromisso firme pela superação das injustiças sociais de nossa sociedade – pior, alguns valem-se de um discurso religioso para justificar ideologias contrárias à fraternidade.
Se queremos defender a família, temos que ajudar a todos a encontrar e viver num ambiente de amor familiar, a descobrirem lares que sejam sinal de esperança e de um justo respeito pelos valores que dignificam a pessoa. Se não queremos que ideologias populistas – sejam de esquerda ou de direita – corrompam a vida política, temos que nos esforçar para combater, numa postura de amor verdadeiramente cristão, as injustiças sociais.
O pensamento politicamente correto, algumas vezes apresentado como contrário ao cristianismo, não é nada mais que uma versão imanentista – algumas vezes deturpada, outras apenas superficial – dos valores cristãos. Numa perspectiva voluntarista, exalta ao máximo a autonomia individual, procurando não ver as contradições inerentes ao ser humano. Mas defende princípios que, devidamente purificados, seriam claramente identificados como cristãos: o respeito a cada pessoa humana e a toda a criação, a solidariedade com os que mais sofrem, a igualdade diante do único Pai de todos.
Quando nosso comportamento social e nossas escolhas políticas não se orientam realmente pelos valores cristãos, se torna muito fácil um cancelamento ideológico do cristianismo. Quando as outras pessoas percebem em nossa conduta um sinal do amor de Deus, podem não se converter e até continuar com posições ideológicas, mas não nos “cancelam”, porque percebem uma luz verdadeira para o mundo.
Sempre me lembro do testemunho de um amigo jornalista, leigo consagrado e celibatário. Quando foi contratado por um grande veículo de comunicação, de algum modo ficaram sabendo de sua opção vocacional. Ele sofria com um clima de estranhamento e discriminação na redação. Mas, com o tempo, os colegas foram percebendo que ele era um amigo confiável, uma pessoa sábia que ouvia e aconselhava nos momentos de dificuldade. Virou um amigo de todos...
O testemunho de um amor maior – não a resposta ressentida e a agressão nas redes sociais – é a estratégia cristã de vencer o cancelamento cultural. Amar não significa faltar com a verdade ou deixar de denunciar o erro, mas implica num modo diferente de se posicionar diante de qualquer situação. Mas esse é um tema para um próximo artigo...