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Para não ter mais medo do dinheiro

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Jean Duchesne - publicado em 28/10/21

Uma análise sobre dinheiro, poder, linguagem e religião

É tão tentador quanto perigoso pegar algumas frases do Evangelho sem se preocupar com o contexto, e fazer uma máxima aplicável ao dinheiro. Este é, entre outros, o caso do famoso trecho “Ai de vós, ricos!”, do Evangelho de São Lucas.

De acordo com São Marcos, os ricos não têm mais chances de serem admitidos no reino de Deus do que um camelo que tem de passar pelo buraco de uma agulha. 

Então, o dinheiro seria culpado, odioso e inerentemente ruim, como um ídolo rival de Deus? É o que o aviso parece confirmar: “Não podeis servir servir a Deus e à riqueza”(Mt 6,24).

E São Paulo, que tem o dom da sistematização, escreve: “A raiz de todo o mal é o amor ao dinheiro”(1 Tm 6,10). 

Entretanto, as coisas ficam mais complicadas se notarmos que Jesus fica satisfeito quando Zaqueu abandona apenas metade de seus bens e que dois homens que claramente não são pobres cumprem uma missão necessária na noite da Sexta-feira Santa.

Dinheiro e confiança

Este episódio também ecoa a passagem do Evangelho de São, em que Jesus defende quem derramou um perfume caro nos seus pés. Judas via isso como um desperdício, em detrimento dos pobres. Há aqui, além da profecia de Cristo de seu próprio sepultamento e uma justificativa do que pode parecer um luxo vão no culto litúrgico, uma indicação da neutralidade ou pelo menos da ambivalência do dinheiro e, em qualquer caso, de seu valor limitado.

Isso também se encontra em duas parábolas: a dos talentos, em que as pessoas que simplesmente fizeram os banqueiros trabalharem são recompensadas, e aquela em que o mordomo desonesto que faz amigos roubando seu mestre é elogiado por sua habilidade. Essas duas histórias levam à mesma lição: “Se, pois, não tiverdes sido fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras?”(Lc 16,11).

O dinheiro é mau?

Verifica-se que a maldade não está no dinheiro em si, mas no uso que dele se faz – ou não se faz. É um meio que é tão prejudicial desprezar quanto erigir no final. Dessa perspectiva, uma analogia com a linguagem pode ser discernida. Como bens materiais e quantificáveis, as palavras faladas não resistem à erosão do tempo. Mas a riqueza perecível torna-se transmissível se for traduzida e representada em dinheiro, primeiro metálico, depois no papel e agora digital. Da mesma forma, as letras voam para o esquecimento, mas têm um efeito mais amplo e duradouro se forem escritas, impressas e divulgadas.

Quando os meios ditam o fim

Podemos ir mais longe: se o dinheiro tem poder, é tanto quanto a linguagem não apenas expressa ideias, mas também produz ações e provoca reações. No entanto, pode acontecer que os meios ditem o fim e o substituam. É por isso que quem tem dinheiro corre o risco de pensar apenas em ficar mais rico e em impor a sua lei.

Da mesma forma, a comunicação pode tornar-se tirânica. As mensagens transmitidas indefinidamente devido ao seu valor sensacional tendem a se impor como verdades incontornáveis e a exercer um poder comparável e, muitas vezes, aliadas ao do dinheiro.

Há sessenta anos, na época do advento da televisão, o filósofo canadense (e católico) Marshall McLuhan explicou: “O meio é a mensagem”. Não estamos presos à telinha para nos comunicar, relaxar ou aprender, mas porque ela é o mestre que nos fascina e de quem não podemos mais prescindir. Isso permanece mais verdadeiro do que nunca na era da internet e das redes sociais. Entretanto, não quer dizer que todas essas tecnologias seriam más – nem o dinheiro. A chave é não nos tornarmos escravos e brinquedos deles.

Se o dinheiro “fala”…

Como a fala, o dinheiro é um sistema de signos que tem uma certa eficácia, seja construtiva ou destrutiva. O que ele representa e o que ele é em si mesmo é um presente do Criador – um presente que pode ser transformado em um instrumento de poder e dominação, e que também pode curar e salvar. 

Como meio de expressão, ao mesmo tempo que de ação, não dá poder sem dizer algo. É assim que ele tem seu lugar até na Igreja. A participação na coleta da Missa, o dinheiro do culto, a esmola, as doações para obras são também, à sua maneira, confissões de fé. E está claro que é melhor para um pastor também ser um administrador sábio.

Por fim, se o dinheiro “fala” à sua maneira e pode ser um meio de mostrar compaixão, contrição e até mesmo compensar silêncios nos casos de abuso sexual que ocuparam o noticiário, não há razão para excluir, a priori, a indenização das vítimas. 

O que contará, então, será a mensagem, isto é, não só as suas formas ou mesmo a sua inspiração, mas também a recepção que lhe será dada e as trocas que daí advêm.

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