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As antigas culturas indígenas são mesmo um modelo ideal de sociedade?

Aztecas

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Francisco Vêneto - publicado em 08/11/21

Violência brutal de tribos de vários continentes desmente a narrativa generalizante de que os povos ancestrais levavam vidas idílicas

É relativamente comum ouvir ou ler declarações de que as antigas culturas indígenas seriam o modelo ideal de sociedade, porque, idilicamente, viveriam de modo harmônico e natural, supostamente sem leis nem impostos, sem pressões econômicas porque tudo seria compartilhado, sem preocupações com o futuro porque todos viveriam um dia depois do outro, sem interferência de governos porque os caciques seriam apenas sábios conselheiros, sem opressão religiosa porque os rituais seriam inofensivos cultos à mãe natureza.

Quem espalha esse tipo de generalização também espalha, via de regra, mais algumas narrativas complementares, como a de que os missionários católicos teriam exterminado brutalmente a vida maravilhosa que os índios levavam antes da sua chegada.

Modelo ideal de sociedade?

Até que ponto essas narrativas refletem a realidade documentada por pesquisadores, arqueólogos e historiadores?

São contundentes os registros de rituais tão sangrentos e violentos praticados pelos astecas, por exemplo, que os próprios conquistadores espanhóis se chocavam com a sua desumanidade. Aos que alegam que esses relatos foram exagerados pelos colonizadores, é o caso de apresentar testemunhos arqueológicos como o dos 650 crânios encontrados em 2017 nos arredores do Templo Maior de Tenochtitlan, um dos principais da antiga capital asteca.

Segundo os pesquisadores, trata-se de restos mortais de centenas de guerreiros feitos reféns e depois executados; seus crânios foram usados para construir uma torre de ossos humanos que é apenas um dos muitos registros históricos de rituais de morte comuns a diversas culturas mesoamericanas anteriores à chegada dos espanhóis ao México. Descobertas arqueológicas similares incluem crânios de mulheres e crianças, o que descarta a narrativa de que as ossadas decorressem de guerras. Os indícios são de extensos rituais em que centenas de pessoas, inclusive crianças e mulheres, eram sacrificadas aos nada meigos deuses astecas. O próprio Instituto Nacional de Antropologia e História, do México, estima que cerca de 75% das vítimas eram homens de 20 a 35 anos; 20% eram mulheres e 5% crianças.

Durante um dos rituais documentados, o sacerdote asteca abria o peito da vítima usando uma lâmina afiada e retirava o seu coração ainda pulsando. Em seguida, o sacerdote retirava a cabeça do corpo assassinado fazendo um corte entre duas vértebras. Depois de removidas a pele e a carne até que restassem somente os ossos do crânio, eram abertos buracos nas suas laterais para que os crânios fossem presos a estacas de madeira. Eram assim formadas autênticas torres de crânios humanos oferecidos às divindades insaciáveis – literalmente, porque, para essa cultura, os sacrifícios humanos eram imprescindíveis para manter os deuses vivos e preservar a existência do mundo.

Ídolos canibais

Um dos deuses, aliás, era Huitzilopochtli, descrito como a “divindade canibal da guerra”: para os astecas, o sol só sairia no dia seguinte se Huitzilopochtli fosse alimentado com as entranhas de vítimas de sacrifícios rituais, pois isto o impediria de comer o sol. Em um dos templos chegava a existir uma estátua de Huitzilopochtli de boca aberta, pela qual era emitida uma voz medonha pedindo mais vítimas e declarando ter sede de sangue.

Crônicas de 1519 narram que Hernán Cortés ficou horrorizado a ponto de destruir ele próprio aquele ídolo a marretadas. Andrés de Tapia e Gonzalo de Umbria contaram 136.000 caveiras humanas em apenas um templo. Chegou-se a calcular que cerca de 100.000 vítimas eram sacrificadas por ano a Huitzilopochtli.

Se o simples conhecimento das características de Huitzilopochtli é capaz de despertar repulsa e horror até os nossos dias, é bom nos prepararmos bem antes de saber quem era a deusa-mãe de Huitzilopochtli: Coatlicoe, que corresponde, mais ou menos, à Pachamama dos incas.

Segundo o pesquisador Andrés Brito Galindo, doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Burgos e professor de Antropologia da Educação no Centro de Estudos Teológicos de Tenerife, ambas as instituições na Espanha, Coatlicoe é um ídolo de cuja cabeça saíam duas serpentes, com outras duas formando os braços, e com garras de ave de rapina constituindo os pés. A essa aberração em forma de ídolo os astecas sacrificavam mulheres grávidas, arrancando-lhes os fetos para dissecar a sua cabeça e fazer colarinhos de pequenos crânios para adornar a deusa-mãe. Representações posteriores incluem nesses colares corações, mãos e caveiras.

Tribos beligerantes

O apontamento acrítico de um suposto modelo ideal de sociedade entre os povos ancestrais não cai por terra somente sob o peso dos seus ritos religiosos sangrentos: também cai por terra sob as mentiras a respeito da alegada natureza pacifista desses povos idealizados.

Os mesmos astecas mantinham vultosos exércitos para submeter cerca de 300 outras tribos da região, mas a realidade sangrenta não se restringia ao território mexicano. A ferocidade das tribos da América do Norte não era menor, nem entre elas próprias, nem com os colonizadores.

Mesmo na alegadamente “pacífica” América do Sul não faltam registros de guerras e raptos entre povos de tribos diferentes. Recentemente, aliás, foi notícia no Brasil a tradução das únicas cartas de que se tem notícia escritas por um indígena em tupi antigo durante o período colonial da história do país. Na troca de correspondências, o indígena católico Felipe Camarão pedia a seus parentes Pedro Poti e Antônio Paraopeba, indígenas protestantes aliados dos invasores holandeses, que voltassem para o lado português. Camarão afirmava que os indígenas precisavam se unir, pois eram do mesmo sangue e não podiam se matar daquela maneira.

Os parentes, porém, não se comoveram. Em 16 de julho de 1645, o padre André de Soveral e 70 fiéis católicos, incluindo indígenas, foram assassinados de modo bárbaro por duzentos soldados holandeses acompanhados pelo grupo de índios potiguares a quem os invasores tinham influenciado. O martírio foi sofrido em plena Santa Missa, na Capela de Nossa Senhora das Candeias, em Canguaretama, litoral do atual Rio Grande do Norte.

Veja mais a respeito desse episódio:

Tribos escravizando outras tribos

A busca pelo “modelo ideal de sociedade” entre os povos antigos não pode eludir o fato incontestável da escravidão.

Esse horror, que muitas narrativas também atribuem exclusivamente aos exploradores europeus durante a era colonialista, era comum entre culturas africanas que não apenas a impunham umas às outras como, frequentemente, participavam dos lucros do tráfico humano vendendo escravos de seu próprio povo aos criminosos europeus que os revendiam às Américas.

A cumplicidade histórica de elites africanas com o tráfico de escravos negros para as Américas, sobretudo para o Brasil, é hoje reconhecida até por descendentes de escravos que buscam reconciliar-se com as suas origens.

É o caso de Zulu Araújo, que, aos 63 anos, em 2016, foi um dos 150 brasileiros convidados pela produtora Cine Group a identificar as suas origens mediante um exame de DNA. Após descobrir que é descendente do povo tikar, de Camarões, Zulu viajou ao país para conhecer a terra de seus antepassados. Lá conheceu o rei tribal, “homem alto e forte de 56 anos, casado com 20 mulheres e pai de mais de 40 filhos“, conforme matéria da BBC sobre o relato de Zulu. Ainda segundo a mesma matéria da BBC, o brasileiro perguntou ao rei africano “por que eles tinham permitido ou participado da venda dos meus ancestrais para o Brasil“.

E Zulu prossegue o depoimento: “O tradutor conferiu duas vezes se eu queria mesmo fazer aquela pergunta e disse que o assunto era muito sensível. Eu insisti. Ficou um silêncio total na sala. Então o rei cochichou no ouvido de um conselheiro, que me disse que ele pedia desculpas, mas que o assunto era muito delicado e só poderia me responder no dia seguinte. O tema da escravidão é um tabu no continente africano, porque é evidente que houve um conluio da elite africana com a europeia para que o processo durasse tanto tempo e alcançasse tanta gente. No dia seguinte, o rei finalmente me respondeu. Ele pediu desculpas e disse que foi melhor terem nos vendido, caso contrário todos teríamos sido mortos. E disse que, por termos sobrevivido, nós, da diáspora, agora poderíamos ajudá-los. Disse ainda que me adotaria como seu primeiro filho, o que me daria o direito a regalias e o acesso a bens materiais“.

Tribos escravizando cristãos

Os próprios cristãos brancos escravizados na África eram muito mais numerosos do que se acreditava até hoje, conforme os estudos do professor Robert Davis, da Ohio State University. A este respeito confira os seguintes artigos sugeridos:

Aparentemente, portanto, as narrativas sobre o “modelo ideal de sociedade” pularam diversos capítulos da História real da humanidade.

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