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A ciência e a fé podem esclarecer por que um Deus bom criaria os vírus?

Corona Virus Corona Virus Covid-19 Biology

Thor_Deichmann

Francisco Vêneto - publicado em 29/11/21

Com o surgimento da variante Ômicron, esta pergunta volta a ficar premente para milhões de pessoas

Anjeanette AJ Roberts é bióloga molecular, tem doutorado pela Universidade da Pensilvânia e realizou trabalhos acadêmicos junto à organização Reasons to Believe (Razões para Crer), que promove o diálogo e a interação entre a ciência e a teologia bíblica. Ela é autora de uma palestra de referência, produzida em DVD no ano de 2017, com o título “Why Would a Good God Create Viruses?” (Por que um Deus bom criaria os vírus?): o próprio título já aborda uma inquietação que talvez nunca tenha gerado tanta perplexidade quanto nesta longa pandemia de covid-19.

O questionamento se torna ainda mais pungente com as recentes notícias sobre mais uma variante de preocupação deste novo coronavírus, a Ômicron, identificada em novembro de 2021 no sul do continente africano e, aparentemente, com capacidade de contágio maior que todas as já elencadas até o momento.

A inquietação ressurge espontaneamente em muitos crentes (e descrentes): por que Deus permitiria isso? Por que um Deus bom criaria algo tão nefasto quanto os vírus?

Milhões de vezes mais vírus na Terra do que estrelas no universo

Anjeanette Roberts anota que existem 10 milhões de vezes mais vírus no planeta Terra do que estrelas no universo inteiro. E o que significa isso em números? Bem, apenas em nossa galáxia, a Via Láctea, estima-se que haja de 200 a 400 bilhões de estrelas – o Sol é somente uma delas e, diga-se de passagem, está muito longe de ser uma das grandes estrelas do universo. Acontece que existem centenas de bilhões de outras galáxias além da nossa, o que multiplica a quantidade de estrelas até um resultado estimado em mais de 10 sextilhões delas, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), do Brasil. Multiplique este número exorbitante por 10 milhões e você terá uma noção de quantos vírus existem em nosso planeta.

No livro “A Planet of Viruses“, o pesquisador Carl Zimmer tenta ilustrar essa grandeza estonteante fazendo comparações como esta: se você alinhar todos os vírus da Terra, eles se estenderão por 42 milhões de anos-luz – ou seja, você precisaria de 42 milhões de anos viajando constantemente a 300 mil quilômetros por segundo para chegar até o final dessa linha. Boa viagem!

Antes de partir, porém, considere mais uma informação para tentar visualizar a quantidade de vírus que existem na Terra: se você precisa de uma linha desse comprimento para enfileirar todos os vírus do mundo, leve em conta que você não está enfileirando coisas do tamanho de laranjas ou maçãs: os vírus têm dimensões submicroscópicas, ou seja, não podem ser vistos nem por microscópios ópticos comuns, mas apenas por microscópios eletrônicos. São da ordem de 0,1-0,01 mícrons, ou seja, mil vezes menores que a espessura de um fio de cabelo humano. Quantos fios de cabelo posicionados paralelamente seriam necessários para você preencher uma fila que precisaria de 42 milhões de anos para ser percorrida a uma velocidade constante de 300 mil quilômetros por segundo? Pois bem, agora multiplique essa quantidade por mil, já que os vírus têm, em geral, um milésimo da espessura desses fios de cabelo. Em resumo: é muito vírus.

Como se não bastasse o fato de serem incomensuravelmente numerosos, os vírus ainda têm uma diversidade extraordinária em tamanho, forma, composição genômica, organização, estratégias de replicação e tipos de células que infectam.

Anjeanette Roberts cita a estimativa (certamente já defasada) de que existam 3 milhões de vírus diferentes só entre os que infectam animais vertebrados. Ela acrescenta que, segundo um estudo feito em morcegos, mais de 90% dos vírus que infectam os mamíferos ainda nem sequer foram identificados. A diversidade deles é tamanha que supera com folga toda a diversidade biológica somada de todas as bactérias, plantas, fungos e animais juntos – e todos estes seres vivos, de todos os domínios existentes no planeta, podem ser (e são) infectados pelos vírus.

A pergunta vai ficando cada vez mais dramática: por que um Deus bom criaria os vírus?

Antes de tentar alguma resposta mais diretamente voltada a esta indagação, vamos aprender um pouco mais sobre eles.

Os vírus não são vivos

Uma das primeiras coisas importantes que é preciso saber sobre os vírus pode soar surpreendente para a maioria das pessoas: os vírus não são organismos vivos. O Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus reforça esta afirmação em seu 7º Relatório.

Mesmo não sendo seres vivos, porém, os vírus carregam códigos para produzir mais vírus – e alguns desses códigos se modificam segundo as circunstâncias para incorporar genes estranhos em seus genomas virais; outros incorporam genes extras nas células hospedeiras, ou empacotam genomas defeituosos que se tornam partículas interferentes…

Também é importante notar que os vírus não conseguem se replicar ou produzir novos vírus sozinhos: eles obrigatoriamente precisam de uma célula viva pertencente a outro ser, da qual eles roubam os recursos e a energia de que necessitam para montarem componentes virais.

Anjeanette Roberts explica que os vírus não captam nutrientes do meio ambiente: eles precisam “sequestrar” mecanismos celulares para a síntese de proteínas e dependem de processos metabólicos celulares e de enzimas para obterem nucleobases e aminoácidos. Os vírus também dependem de sistemas de transporte intracelular para muitas etapas na sua replicação e montagem viral. Sem atacarem células vivas, os vírus por si sós jamais seriam capazes de se multiplicar.

Mas, afinal, se não são seres vivos, o que são os vírus?

Os vírus são estruturas acelulares formadas por dois componentes básicos: proteínas e ácido nucleico (RNA ou DNA). Alguns têm um terceiro componente, o envelope lipídico.

Estruturas muito simples em comparação com as células, os vírus não possuem organelas ou ribossomos, razão pela qual não podem ser considerados organismos, e não apresentam todo o potencial bioquímico necessário para produzirem a sua própria energia metabólica, razão pela qual não podem ser considerados seres vivos. Eles são parasitas intracelulares obrigatórios, porque dependem de células alheias para se multiplicarem. Além disso, diferentemente dos organismos vivos, os vírus não conseguem crescer em tamanho nem dividir-se.

Justamente por não serem organismos vivos, eles são inertes fora do ambiente intracelular – mas, uma vez que invadem uma célula, conseguem replicar milhares de novos vírus em poucas horas.

E como é que eles interagem e afetam a célula e conseguem prejudicar todo um organismo humano se nem sequer são um organismo vivo? Numa comparação muito grosseira, pense numa gota de veneno numa jarra de água. A gota de veneno não é viva, mas interage com a água e contamina a jarra inteira. Algo não precisa estar vivo para interferir na saúde de um organismo: basta alterar as suas condições normais de funcionamento.

E de onde vieram essas criaturas?

A humanidade demorou para descobrir os vírus. É claro que eles já estavam entre nós (e dentro de nós) já fazia milênios, mas só começamos a identificá-los há relativamente pouco tempo devido a um melhor entendimento das doenças que eles provocam. Foi assim com o vírus da raiva, com o da varíola etc. A partir da metagenômica, porém, conseguimos entender que o planeta é repleto de vírus e que eles estão em qualquer ambiente onde exista vida.

Sabemos que eles próprios criam uns aos outros replicando-se, mas não temos certeza de quase nada sobre o surgimento inicial dessas criaturas: grande parte dos cientistas trabalham com indícios de que eles tenham surgido a partir de rejeições celulares ou que tenham escapado de genes de organismos vivos. Os retrovírus endógenos (ERVs), por exemplo, são predominantemente considerados como o resultado de infecções retrovirais antigas e eventos de inserção, mas apenas uma fração das funções associadas a eles foram identificadas até o momento para se conhecer com mais objetividade a sua origem.

Também é possível criar vírus em laboratório? Sim. Para ficarmos por aqui mesmo, no Brasil, podemos recordar que, em 2010, pesquisadores das Universidades Federais de Pernambuco e do Rio de Janeiro (UFPE e UFRJ) criaram em laboratório um vírus artificial de HIV, para fins de desenvolvimento de uma nova vacina terapêutica para pacientes de aids. O vírus artificial foi obtido por meio de clonagem, usando a técnica da reação em cadeia da polimerase. O professor Sergio Crovella, do Departamento de Genética da UFPE, resumiu na ocasião: “Cortamos e colamos pedaços do DNA até construir um genoma do vírus HIV inativado”.

Os vírus servem para algo de bom?

O vírus artificial desses pesquisadores brasileiros foi criado para fins terapêuticos, mas e os vírus naturais? Todos eles nos deixam doentes?

Não: só uma fração muito pequena dos vírus está associada a doenças humanas. Neste grupo, grande parte dos vírus tem origem animal: são os vírus zoonóticos, transferidos ao ser humano a partir do contato com animais que os hospedavam. Parte considerável desse contato, aliás, acontece devido ao manejo descuidado da criação por parte do próprio ser humano.

Quanto aos vírus que não nos adoecem, eles servem para alguma coisa útil? Por mais absurdo que possa soar durante uma pandemia viral, sim: há vírus que servem para algo tão “útil” quanto permitir a sobrevivência das espécies. As incontáveis e inevitáveis mudanças dos vírus ao longo do tempo exerceram e exercem influência crucial na trajetória da vida na Terra e na manutenção da biodiversidade.

É graças aos vírus, por exemplo, que as bactérias e outros organismos unicelulares não “dominam” a Terra, pois, se não fossem impedidas pelos vírus, as bactérias sequestrariam todos os nutrientes e preencheriam todos os nichos ecológicos, impossibilitando a sobrevivência de organismos multicelulares.

Os vírus bacteriófagos, isto é, que infectam bactérias e arqueias, matam de 40% a 50% das bactérias nos oceanos da Terra – diariamente! Este processo libera uma extraordinária abundância de moléculas orgânicas no ciclo biogeoquímico e na cadeia alimentar da Terra, o que permite a sobrevivência de outros organismos. Os vírus bacteriófagos não somente ajudam a manter o equilíbrio dos nichos ecológicos do planeta, mas também o dos microbiomas do corpo humano, evitando que sejamos completamente tomados pelas bactérias. Anjeanette Roberts ilustra: se não fosse graças ao equilíbrio promovido pelos vírus bacteriófagos, a Terra seria uma gigantesca bola de bactérias sem espaço nem alimento para quaisquer outros organismos sobreviverem.

Ok, mas será mesmo que Deus precisava criar essas coisas?

Repare que a pergunta está se ampliando para englobar não só os vírus, mas praticamente tudo o que envolve riscos para o ser humano. Por que Deus criou vírus, bactérias, larvas, mosquitos, moscas, baratas, aranhas, cobras, tiranossauros? E por que criou terremotos, vulcões, secas, enchentes e tempestades? E por que o câncer, a aids, a covid-19? Por que a doença, o sofrimento, o medo, a angústia? Por que a morte?

Não poderíamos também perguntar por que Deus criou a nós próprios? Ou mais radicalmente: por que Deus criou o que quer que seja, quando muito bem poderia não ter criado nada? Afinal, se Deus é Deus, Ele é perfeito em Si mesmo e não precisa de nada além d’Ele próprio.

Mais radicalmente ainda: por que Deus mesmo existe? E, enfim, a mais radical das perguntas radicais: Deus existe mesmo?

Seja para a fé, seja para a ciência, o mistério central da existência é o próprio fato de existir o que existe, quando poderia não existir nada. O conjunto de tudo o que existe abrange uma quantidade monumental de entes e fenômenos que não entendemos – e a ciência não só não explica de modo definitivo como foi que eles surgiram como sequer teria esta possibilidade, já que, afinal, não é possível comprovar nem refutar de modo incontestável a hipótese de um Deus Criador.

E a fé? A fé tampouco prova de modo categórico o seu objeto, pois consiste justamente no livre ato de acreditar, isto é, de dar crédito ao que é possível, mas não é empiricamente demonstrável. Mesmo aceitando-se pela fé o pressuposto de que aquilo que existe só existe porque Deus o criou, ainda assim se retorna ciclicamente à mesma pergunta: por que Ele o criou?

Neste ponto, tanto a fé quanto a ciência convergem no frustrantemente óbvio: não sabemos. A própria fé se vê obrigada a falar em “mistério”. E as ciências empíricas só chegam até os limites do seu próprio campo de ação, que é traçado pela matéria e que, portanto, as obriga a se absterem de afirmar ou negar o que extrapola a matéria, a não ser para aventar hipóteses.

O mistério do mal… de novo!

Isto posto, a pergunta sobre o porquê de Deus permitir os males provocados pelos vírus (ou por qualquer outro agente) se dilui na pergunta essencial sobre o mistério do mal em si mesmo: por que o mal?

O mistério do mal pode ser abordado da perspectiva religiosa, já que envolve a noção de Deus bom, mas também é possível – e necessário – abordá-lo da perspectiva filosófica. E o mal, filosoficamente, costuma ser descrito não como um ente que exista em si mesmo, mas sim como a ausência de bem onde o bem poderia existir. Sobre isto, depois de terminar de ler esta matéria, confira o seguinte artigo:

Um conceito que exerce papel-chave na contextualização do mistério do mal é o do livre arbítrio, seja do ponto de vista filosófico, seja do religioso. De fato, as religiões em geral propõem que a existência fugaz neste mundo, que é transitório em si mesmo, tem matizes de provação, regeneração e redenção, o que, por conseguinte, pressupõe que existam desafios a ser enfrentados pelo ser humano com a sua liberdade de fazer escolhas.

Desta perspectiva, a própria natureza deste mundo imperfeito se autoexplica: esta fase finita da nossa existência seria uma breve experiência do bem e do mal, durante a qual somos continuamente convidados a exercer o livre arbítrio e empregar nossos talentos da melhor forma possível a fim de gerir a criação, da qual nós mesmos fazemos parte e sobre a qual temos um misto paradoxal de muito poder e poder nenhum.

No caso dos vírus, aliás, esta é exatamente a experiência que temos: os vírus nos ameaçam, mas também nos fornecem matriz abundante de genes inexplorados e sistemas de entrega para respondermos a boa parte dos desafios da humanidade no campo da saúde. A ciência aproveita muitos deles para descobrir as chaves da biologia celular e, por conseguinte, para mitigar doenças. Vírus são utilizados, por exemplo, em terapia gênica, terapia de câncer, edição de genes, produção de vacinas e nanomedicina.

Enquanto lidamos com os desafios impostos a nós pelos vírus, ou pelas bactérias, ou pelas secas, enchentes e terremotos, ou pelas nossas próprias escolhas ruins possibilitadas pelo exercício do livre arbítrio, podemos nos indagar se a pergunta mais decisiva a ser feita seria mesmo “por que” Deus permite o mal ou se, em vez dela, não seria mais instigante perguntar-nos “para que” o permite. Se o “para quê” não fizer sentido, o “por quê” não fará a menor diferença.

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