Papas são constrangidos a falar sobre quase tudo. Além dos temas teológicos inerentes a suas funções, as comunidades católicas e a sociedade em geral esperam deles orientações e posicionamentos sobre os temas mais polêmicos e contundentes. Essa pluralidade de questões traz um problema: oferece uma grande quantidade de frases que, tiradas do contexto, prestam-se às mais variadas interpretações.
Para piorar, católicos engajados, ativistas sociais e jornalistas tendem a interpretar as palavras dos pontífices do modo que lhes parece mais oportuno. Quando gostam de um papa, só citam passagens com as quais concordam, geralmente aproximando-as mais ainda de suas posições pessoais. É como se dissessem “penso como o papa”, mas na realidade pensassem o inverso, “o papa pensa como eu”. Se não gostam do papa, só citam passagens com as quais não concordam, sempre as apresentando do modo mais desumano possível.
Com isso, grande parte do povo católico não sabe realmente o que os papas pensam. As pessoas conhecem, na verdade, as interpretações e construções intelectuais feitas a partir das palavras de cada papa. Os estereótipos de “progressista” e “conservador”, por exemplo, devem muito a essas distorções interpretativas. Todo papa irá se aproximas mais de posições “progressistas” em algumas questões e mais de posições “conservadoras” em outras. Mas, no imaginário social, cada um deles ocupa uma posição no espectro teológico e só se posiciona dentro desse esquematismo.
Uma leitura deturpada das palavras de Francisco
Desde o início de seu pontificado, Francisco sofre com uma interpretação “ateia” de seu magistério. Se pedirmos uma síntese me poucas palavras de seus ensinamentos, grande parte de seus admiradores – católicos ou não – lembrará a opção pelos pobres, a acolhida a homossexuais e a defesa do meio ambiente. Os mais enfronhados na dinâmica interna da Igreja, lembrarão a renovação das estruturas eclesiásticas, visando uma dinâmica com maior participação e protagonismo.
De fato, esses temas mostram a originalidade e o espírito renovador de Francisco. Contudo, são as dimensões mais visíveis de uma vida fundada no encontro com Cristo. Seria uma traição ao próprio papa que se admira pensar em sua contribuição sem ancorá-la numa profunda experiência religiosa, na vida de oração e na escuta atenta ao que diz o Espírito.
Logo após sua eleição, Papa Francisco fez questão de afirmar: “Podemos caminhar o que quisermos, podemos edificar um monte de coisas, mas se não confessarmos Jesus Cristo, está errado. Tornar-nos-emos uma ONG sócio-caritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor [...] Quando não se edifica sobre as pedras [...] tudo se desmorona, não tem consistência. Quando não se confessa Jesus Cristo, faz-me pensar nesta frase de Léon Bloy: ‘Quem não reza ao Senhor, reza ao diabo’. Quando não confessa Jesus Cristo, confessa o mundanismo do diabo, o mundanismo do demônio”.
Anos depois, na Exortação Apostólica Querida Amazonia (2020), Francisco voltaria a esse tema: “A autêntica opção pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor que os promove e dignifica. Seria triste se recebessem de nós um código de doutrinas ou um imperativo moral, mas não o grande anúncio salvífico, aquele grito missionário que visa o coração e dá sentido a todo o resto. Nem podemos contentar-nos com uma mensagem social. Se dermos a vida por eles, pela justiça e a dignidade que merecem, não podemos ocultar-lhes que o fazemos porque reconhecemos Cristo neles e porque descobrimos a imensa dignidade a eles concedida por Deus Pai que os ama infinitamente [...] É o anúncio de um Deus que ama infinitamente cada ser humano, que manifestou plenamente este amor em Cristo crucificado por nós e ressuscitado na nossa vida [...] Sem este anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus Cristo: ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura’ (Mc 16, 15)” (QA 63-64).
No mundo de hoje, faltam lideranças que demonstrem uma posição humana verdadeira, uma real empatia pelos que sofrem, um compromisso com a natureza que não é puramente demagógico. Nesse contexto, muitos nãos católicos e até ateus se entusiasmam com a figura do Papa Francisco. É natural que essas pessoas tenham dificuldade para entender a raiz cristã do comportamento do Papa. O problema surge quando os próprios católicos perdem essa fundamentação religiosa, pois colaboram para distorcer ainda mais a pregação de Bergoglio, ao invés de ajudar os não cristãos a entenderem sua mensagem.
Uma tarefa para todos nós
Frequentemente, ao nos debruçarmos sobre os ensinamentos da Igreja, fazemos a pergunta errada. Perguntamo-nos: quais são as passagens que legitimam minha conduta ou com as quais me identifico mais? Com isso, fazemos uma leitura autorreferenciada do magistério católico. A pergunta mais justa seria: quais são as passagens que mais me corrigem ou que me levam a repensar minha visão de mundo? São essas passagens, sem dúvida incomodas, que nos ajudam a trilhar com segurança cada vez maior o caminho que nos leva a Deus.
A interpretação ateia de Francisco é um sintoma dessa tendência de nos determos naquilo que nos é mais simpático. As imagens fortes do compromisso com os pobres e com o meio ambiente, da acolhida aos excluídos, da reforma nas estruturas eclesiais têm um fascínio inegável – e são um convite para uma importante conversão no coração de todos nós. Contudo, para serem vividas num verdadeiro espírito evangélico, implicam num trabalho de reconhecer as origens desses comportamentos na adesão a Cristo e na experiência da misericórdia do Pai em nossa vida.
Nas palavras do próprio Francisco: “A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus: um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à minha existência; mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou possível pela comunidade de fé em que vivi e graças à qual encontrei o acesso ao entendimento da Sagrada Escritura; à vida nova que flui, como jorros de água, de Jesus através dos sacramentos; à fraternidade com todos e ao serviço dos pobres, verdadeira imagem do Senhor”.
O perigo reside na tentação de contrapor a raiz aos frutos, como se quem vive o compromisso social não vivesse o encontro com Cristo, ou quem vive o encontro com Cristo não tivesse que ter um compromisso social. Se adentramos por essa contraposição sem sentido, não conseguiremos viver um cristianismo integral, não importa o quão radicais sejamos.