Na Quarta-Feira Santa, mesmo nesse mundo cristão cada vez mais secular, as mídias sentiram necessidade de falar de Jesus. Um dos grandes jornais brasileiros publicou a entrevista com uma escritora que havia feito um livro recontando a crucificação – mas numa perspectiva que a própria autora considera “não-religiosa”, uma vez que ela mesma não tem fé.
Não me interessa aqui polemizar com a autora ou criticar seu livro (que não li). Quanto a isso, observo apenas que os autores contemporâneos desaprenderam, em sua maioria, a fazer a pergunta certa. A questão não é como seria Cristo se retirado de sua aura divina, tornado um homem igual a nós. Esse personagem permanece interessante, mas seria igual a dezenas de outros grandes heróis trágicos. Não existe uma razão especial para se deter nele. A pergunta justa é o que significa um Deus se tornar homem. Tenhamos fé ou imaginemos que a divindade de Cristo é apenas um mito, o fato é que a afirmação da existência de um Deus-homem marcou o imaginário da humanidade e permanece como questão fundamental a desafiar as crenças de cada ser humano.
Voltando à matéria do jornal, chama a atenção algumas frases da entrevistada: “A noção do martírio como valor é uma aberração da qual ainda hoje somos tributários” e “A crucificação de Cristo é pior que inútil – é tóxica. Um ato que deveria nos salvar, mas que não apenas não nos salvou, ainda nos condenou”. Essas frases mostram uma total incapacidade, típica da mentalidade contemporânea, de compreender e aceitar o sofrimento e o sacrifício.
Contudo, o sofrimento e o sacrifício não deixaram de ser necessários e marcar profundamente a humanidade de nosso tempo – basta ver a experiência das mães pobres que se sacrificam entre trabalho e filhos nas periferias de nossas grandes cidades ou a comoção que sentimos diante dos cidadãos ucranianos que se propõem a morrer enfrentando o poderoso exército russo. Pior do que isso, quem não entende o sacrifício também não entende o amor. Reconhecemos a grandeza do amor, quer sejamos os amados, quer sejamos os amantes, pela capacidade doação – e não existe doação maior que o sacrifício. Um mundo sem sacrifício é um mundo de amores medíocres, afetos prazerosos, mas descartáveis, vendidos, comprados e trocados no mercado da vida.
Os limites da apologia racional
Diante desse tipo de mentalidade, procuramos fazer grandes apologias racionais, explicando o que é o amor, o que é o sacrifício, qual a justa interpretação do cristianismo e dos valores da fé. Esse texto, que você está lendo agora, se enquadra nessa categoria... Esse tipo de discurso pode ajudar a nós cristãos a compreendermos melhor nossa fé, a saber porque nos sentimos mal-entendidos e até caluniados na cultura atual (ao menos, espero sinceramente que esse texto ajude a você leitor nessa perspectiva). Contudo, é impotente para ajudar quem não fez a experiência de ser amado, de se sacrificar ou ser a razão do sacrifício de um outro.
O sofrimento, vivido na perspectiva do amor e do sacrifício, pode nos tornar mais felizes. Essa afirmação está na base da compreensão do que é o cristianismo, mas não é lógica. Não é um autoengano, mas depende de uma vivência prévia, que a torna crível e que permite depois todas as reflexões que nascem da fé ou de uma humanidade plenamente consciente de si mesma. A verdade, numa visão realista, não nasce de raciocínios abstratos, mas da reflexão sobre as vivências concretas que fazemos.
“Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente [...] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre a sua vocação sublime”, explica a Gaudim et Spes (GS 22). Cristo não nos revela a nós mesmos porque faz um discurso mais inteligente do que o dos filósofos, mas sim porque faz um gesto de amor radical e extremado, que permite que nos entendamos e aceitemos plenamente nossa humanidade contraditória. Por isso, seu sacrifício não foi em vão, ainda que seu sentido sempre permaneça sujeito à liberdade de interpretação do coração de cada um.
Mas, podemos nos perguntar, depois de séculos de cristianismo, como chegamos a essa situação, na qual o sentido do amor e do sacrifício – tanto de Cristo quanto de cada um de nós – se perdeu?
A fragilidade da bondade sem dignidade
Infelizmente, ao longo dos séculos, o poder foi corrompendo a experiência humana da bondade, criando uma maldosa dicotomia. Quem tem o poder não precisa ser bondoso. Mesmo numa condição ideal, se espera que o poderoso seja justo, corrija os erros e até trate os demais com uma certa magnanimidade. Mas a bondade, que ultrapassa até mesmo os limites da justiça, que assume o perdão e chega ao sacrifício, parece uma virtude dos fracos. Mais uma desculpa ou uma autojustificação pela fraqueza do que um valor real.
Nem sempre nos damos conta disso, mas um certo estereótipo dos papeis paternos e maternos reforça essa dicotomia. O pai corrige, a mãe perdoa; o pai administra, a mãe cuida; o pai é viril, a mãe é submissa. Em famílias nas quais a complementaridade conjugal não se realiza como equilíbrio amoroso, a própria imagem da bondade parece estar associada a uma pessoa que não exerce integralmente sua dignidade. Infelizmente, tal realidade é muito mais frequente do que imaginamos, e enfraqueceu, ao longo da história, a justa compreensão do amor e do sacrifício.
Se esse problema já existe em muitas famílias, se torna ainda maior na sociedade como um todo. Os que exercem o poder, políticos, militares, juízes, policiais, devem ser justos. Os bondosos são os padres e freiras que não têm poder nem força, que vivem pedindo contribuições para os pobres e falando em perdão.
Não nos damos conta, mas vivemos numa sociedade que reconhece a dignidade do poder e da força, mas não reconhece a dignidade da bondade e do amor gratuito.
A Quaresma e a Páscoa, tempos em que refletimos sobre o amor e o sacrifício de Jesus, são uma boa ocasião para refletirmos sobre a visão que temos da bondade e do amor, pois nós mesmos – nesses tempos de ressentimentos e de polarização política – podemos não estar sendo um testemunho adequado do que são o amor, a bondade e o sacrifício pelo irmão.