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Da Covid ao aborto: uma reflexão sobre ciência, cientificidade e ideologia

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 27/03/22

Há muito tempo os grupos pró-aborto se tornaram hegemônicos na OMS e outros organismos internacionais

A Organização Mundial da Saúde (OMS), num documento recém-lançado, reforçou sua posição em defesa da despenalização do abortamento em qualquer momento da gravidez. Ainda que exista uma vida a ser tutelada desde a concepção, é forçoso lembrar – nesse caso – que o aborto realizado nos últimos meses da gestação equivale a um infanticídio, pois a criança já está totalmente formada e pode inclusive sobreviver fora do corpo da mãe. As justificativas são sempre as mesmas, o direito da mulher a decidir o que fazer com o próprio corpo e o número de mulheres pobres que morrem ou sofrem graves sequelas de abortos inseguros realizados fora da lei.

Há muito tempo os grupos pró-aborto se tornaram hegemônicos na OMS e outros organismos internacionais, valendo-se desses fóruns para influir nas políticas públicas de vários países. Essa realidade, infelizmente, tem levado muitos de nós a uma oposição sistemática a tudo que os organismos internacionais defendem. Paralelamente, tem levado também a um certo “negacionismo” em relação aos dados científicos, como se nenhuma conclusão emanada da comunidade científica tivesse valor e pudéssemos escolher a “verdade científica” que mais nos agrada – geralmente aquela defendida pelos que pensam como nós.

Na pandemia de Covid-19, essa questão levou muitas vezes a um enfrentamento ideológico entre os partidários de diferentes estratégias de saúde pública. A expressão “baseado em evidências científicas” parecia legitimar qualquer coisa para uns e não significar nada para outros. A desconfiança de um cientista contrário à OMS teria mais peso do que o posicionamento da maioria esmagadora da comunidade científica e dos mecanismos de validação adotados pelas publicações da área. Negacionismo e cientificismo são reduções ideológicas que não nos permitem contemplar a realidade tal qual ela se apresenta. Nenhum deles corresponde a uma busca honesta pela verdade.

Compreender o cientificismo e o negacionismo

A boa ciência reconhece que não está buscando a Verdade, como deve acontecer com a reflexão filosófica ou teológica. Sua pretensão é bem menor: quer apenas conhecer os fenômenos e sua dinâmica. Nesse sentido, produz apenas conhecimentos transitórios e relativos, destinados a ser superados quando outros novos permitirem uma compreensão melhor da realidade. Conclusões científicas têm sempre uma probabilidade de estarem certas ou erradas. Contudo, a comunidade científica desenvolveu, com o tempo, procedimentos para verificar quais teorias são mais plausíveis. Podemos constatar, pelo aumento constante de nossos conhecimentos sobre o universo e de nosso domínio tecnológico sobre a matéria, que tais verificações são confiáveis. Não é mais possível pensar numa visão realista do mundo sem os dados produzidos pela ciência.

O conhecimento científico, porém, pode apenas dar subsídios para decisões éticas – ele não fornece a sabedoria necessária para a tomada dessas decisões. Por exemplo, a ciência mostra que o gênero, enquanto construção social e psicológica, pode ser diferente do sexo biológico de um indivíduo; pode estudar os mecanismos que levaram a essa fratura entre gênero e sexo, bem como suas consequências para a pessoa e a vida em sociedade. Contudo, não pode dizer qual a melhor maneira de cada um viver a própria sexualidade. A ciência fornece informações importantes para a tomada das decisões éticas, mas é falacioso imaginar que nossas decisões vêm da ciência exclusivamente.

No caso da pandemia, a ciência pode nos dizer que uma vacina diminui a probabilidade de morrermos de Covid-19, mas não nos diz que devemos tomá-la. A decisão de tomar a vacina parte de uma opção ética pela defesa da nossa vida e das pessoas que amamos, ou pelas quais somos parcialmente responsáveis (no caso dos gestores públicos). Uma pessoa pode não querer tomar vacina alegando outros imperativos morais, medo ou por seguir a opinião divergente de um determinado médico. Não poderá negar, contudo, que os resultados alcançados pela ciência indicam que, até aqui, a vacina é a melhor defesa contra a Covid-19.

No caso do aborto, a ciência pode mapear o número de abortos ilegais e mortes deles decorrentes em uma sociedade, pode estudar as consequências psicológicas tanto de realizar quanto de não realizar o aborto, etc. – mas não pode responder à pergunta “aquela mãe será mais feliz abortando ou não abortando?”. A ciência também mostra, de forma cristalina, que a partir da concepção temos um novo ser humano, com características genéticas e individualidade diferente daquela da mãe – mas reconhecer que todo ser humano é uma pessoa com dignidade e direitos inalienáveis é uma decisão filosófica e política, não científica… Diga-se de passagem, não deixa de ser irônico que numa época em que tanto se defende a dignidade e os direitos de todos, não reconheçamos a dignidade e o direito à vida em nossos próprios filhos…

Superar positivamente as posições ideológicas

Para superar tanto o cientificismo quanto o negacionismo, é necessário reconhecer tanto a força quanto a relatividade da ciência. Nem sempre as teorias científicas correspondem ao que acontece na realidade, mas são relativamente raros os casos em que uma conclusão assumida pela comunidade científica internacional não se demonstre válida ao longo do tempo. Por outro lado, a ciência nos diz como as coisas funcionam, mas não nos dize o que fazer. Decisões éticas ou políticas devem ser tomadas utilizando-se a informação científica disponível, mas seguindo critérios de discernimento que nascem de uma visão integral da pessoa e da sociedade.

Quando organismos internacionais incorrem em posições que nos parecem desumanas, como a defesa do aborto, a oposição incondicional a tudo o que dizem é uma postura anticristã (porque não considera as ocasiões em que tomam posições justas e defendem o bem comum) e ineficiente em termos de política cultural. A oposição incondicional facilita a integração entre os que pensam igual, mas dificulta o diálogo e o convencimento dos que estão em dúvida, que acabam optando pelo lado oposto, que passa a ser visto como mais razoável. Se agirmos como opositores intransigentes, a tendência é que nos tornemos um grupo cada vez mais extremista e minoritário.

A posição mais cristã e politicamente mais eficiente é reconhecer e valorizar esses organismos, quando realmente se posicionam em defesa do bem comum e da pessoa, procurando sempre inserir essas bandeiras justas numa visão de mundo mais integral e humana. Por exemplo, devemos apoiar todas as políticas internacionais que realizam uma justa defesa da mulher e de seus direitos, que são, de fato, frequentemente desrespeitados em vários países e situações. O “direito” ao aborto, contudo, deve ser repensado em termos do direito a ter um filho e ser apoiada em sua maternidade. O incentivo ao aborto, no fundo, representa uma desobrigação do Estado e da sociedade para com aquela mulher, que estará – queira ou não queira – negando uma dimensão importante de sua feminilidade, e para com o seu filho. O direito a ter um filho e ser feliz com ele, não importa as condições em que foi gerado, é muito mais humano e integral do que o direito ao aborto.

Na medida em que assumimos tudo o que é positivo em todas as posições, sem sectarismos, procurando inserir cada coisa numa visão integral de pessoa, encontramos as formas mais cristãs e eficientes de nos colocarmos na sociedade contemporânea.

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