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Princípios irrenunciáveis e política no Brasil

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 08/05/22

Se nossos candidatos ou grupos políticos traem algum desses princípios, nosso dever é alertá-los e exortá-los a uma adesão mais completa e integral a todos eles – mesmo que isso signifique uma perda política

Em períodos eleitorais, nós católicos, voltamos a ouvir falar com frequência nos “princípios irrenunciáveis”, destinados a orientar nosso voto e a conduta dos eleitos. Se tantos os citam como critérios de conduta, tantos outros os olham com desconfiança, acusando aos demais de estarem usando ideologicamente a doutrina social da Igreja – sintoma das dramáticas divisões que afetam a nós católicos, em nossa dificuldade para conciliar pluralidade e unidade. O problema de fundo não está nos princípios, mas sim em seu mal uso.

Os princípios e a partidarização da experiência cristã

As questões são decorrentes, em grande parte, do interesse que os grupos partidários têm de conseguir o voto católico. Cada um procura “filtrar” a doutrina social da Igreja a partir de suas convicções, tentando mostrar seus candidatos como os únicos que se adequam aos princípios propostos pelo Magistério. Essa tendência de ideologização não é, em si mesma, um desejo de manipulação. Muitos buscam fazer esse uso partidário com a melhor das intenções, porque acreditam realmente que seu grupo é aquele que melhor representa os ideais cristãos. Outras vezes, porém, vem com interesses demagógicos, de gente que se diz seguidora de princípios cristãos para conseguir apoio, mas de fato age de forma totalmente oposta a esses princípios.

O candidato ideal, perfeito tanto na teoria quanto na prática não existe, por um motivo muito simples: todos eles são seres humanos limitados e sujeitos ao pecado – como nós mesmos, diga-se de passagem. Os partidos, enquanto agremiações que fatalmente incluem pessoas diferentes, tampouco podem ser perfeitos. A história recente mostrou os limites e as decepções trazidas pelos partidos autodenominados “democracias cristãs”, que muitas vezes usavam o cristianismo de forma falsa e demagógica.

A partir de constatações dessa natureza, o Compêndio de Doutrina Social da Igreja esclarece: “O cristão não pode encontrar um partido plenamente às exigências éticas que nascem da fé e da pertença à Igreja: a sua adesão a uma corrente política não será jamais ideológica, mas sempre crítica, a fim de que o partido e o seu projeto político sejam estimulados a realizar formas sempre mais atentas a obter o verdadeiro bem comum, inclusive os fins espirituais do homem” (CDSI 573), de tal forma que “a adesão a um partido ou corrente política seja considerada uma decisão a título pessoal, legítima ao menos nos limites dos partidos e posições não incompatíveis com a fé e os valores cristãos” e “a ninguém é permitido reivindicar exclusivamente, em favor do seu parecer, a autoridade da Igreja: os crentes devem antes procurar «esclarecer-se mutuamente num diálogo sincero, guardando a caridade mútua e tendo, antes de mais, o cuidado do bem comum” (CDSI 274).

Estas passagens do Magistério são importantes para que tenhamos a prudência e os respeito necessários para que os princípios irrenunciáveis possam servir a um diálogo frutuoso sobre os temas políticos, tanto no seio da comunidade cristã quanto com a sociedade civil em seu conjunto.

A política é a arte da negociação

Esses princípios foram muitas vezes denominados como “inegociáveis”. O termo pode ser usado se entendemos que eles não podem ser sacrificados em negociações que visam o poder ou outros ganhos menos fundamentais. Contudo, a política é a arte da negociação e o próprio documento que os apresenta dá exemplos de negociações que podem se tornar necessárias para defendê-los ou minimizar o efeito de leis contrárias a eles (cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, 2002).

O exemplo de negociação vem justamente na questão do aborto, uma “exigência ética fundamental e irrenunciável”, no dizer do documento. Citando São João Paulo II e a sua encíclica Evangelium vitae (EV 73), a Nota Doutrinal explica que é possível que “um parlamentar, cuja pessoal oposição absoluta ao aborto seja clara e por todos conhecida, possa licitamente dar o próprio apoio a propostas tendentes a limitar os danos de uma tal lei e a diminuir os seus efeitos negativos no plano da cultura e da moralidade pública”. Ou seja, ele participaria de uma negociação com outros parlamentares para reduzir as situações em que o aborto é permitido.

Não seria lícito, contudo, uma negociação em que se aceitasse o aborto em troca da aprovação de uma lei que regulasse transações comerciais ou envolvesse privatizações. Nesse caso, o irrenunciável se apresenta como inegociável.

O desafio de ser integral

O maior problema para o justo entendimento desses princípios, contudo, é uma visão reduzida de sua aplicação, orientada por um falso “realismo político”. Muitos acreditam que chegar ao poder é a única forma de conseguir aquilo que almejamos. Assim, é realista sacrificar qualquer ideal para se chegar ao poder. Uns, em nome da opção pelos pobres, deixam de lutar contra o aborto. Outros, em nome da defesa da vida, fecham os olhos à situação dos mais pobres.

Quando caímos nesses reducionismos, perdemos a unidade e a coerência interna do Magistério católico, permitindo a instrumentalização da doutrina social e dando razão às dúvidas de nossos irmãos. A postura justa é aquela de sempre buscar uma visão integral e unitária de todos esses princípios, orientada ao diálogo e à construção do bem comum.

Sem fazer um elenco completo, mas procurando apenas dar exemplos, a Nota Doutrinal já citada lista cinco “princípios irrenunciáveis”: (1) o direito à vida, (2) a proteção e promoção da família, (3) a liberdade – em particular religiosa e de educação, (4) a economia a serviço da pessoa e (5) a construção da paz. Todos são irrenunciáveis, não podemos escolher um e esquecer outros.

Se nossos candidatos ou grupos políticos traem algum desses princípios, nosso dever é alertá-los e exortá-los a uma adesão mais completa e integral a todos eles – mesmo que isso signifique uma perda política. Podemos chegar até ao ponto de deixar de darmos nosso apoio a eles. O que não podemos é fechar os olhos quando abandonam algum desses princípios, com alegações como “o adversário faz pior” ou “temos que aceitar isso para defender aquilo”.

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