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Maravilha, silêncio, unidade… A liturgia de acordo com Francisco

Catholic mass.

Pascal Deloche | Godong

Valdemar De Vaux - publicado em 30/06/22

A 29 de Junho, o Papa Francisco publicou uma carta a todos os fiéis sobre o tema da liturgia. É uma longa meditação, a ser lida a fim de melhor viver as celebrações e compreender a sua importância na vida cristã

O título da carta apostólica do Papa Francisco publicada na quarta-feira 29 de Junho, Solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo, é evocativo. “Desiderio desideravi” é de fato o início de uma fala de Cristo antes da Última Ceia: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer.” (Lc 22,15). Segue-se uma longa meditação sobre a liturgia, com ênfase na formação, como o título do texto indica. Mas, um ano após o motu proprio Traditionis custodes, o sucessor de Pedro quer acima de tudo reiterar a necessidade de trazer a paz sobre as questões litúrgicas.

[N. do R. – As passagens traduzidas neste artigo não são uma tradução oficial, já que o Vaticano não ofereceu uma tradução oficial em língua portuguesa. O Vaticano ofereceu apenas traduções oficiais em alemão, inglês, espanhol, francês e italiano]

1 – FRANCISCO DIRIGE-SE A TODOS E OFERECE REFLEXÕES SOBRE A LITURGIA

Um ano após a carta apostólica Traditionis custodes, o Papa Francisco dirige-se a todos os fiéis. Ele deseja meditar sobre a liturgia, “uma dimensão fundamental para a vida da Igreja”. Ao contrário do motu proprio, esta carta não tem qualquer efeito regulador.

O assunto é vasto e merece uma consideração cuidadosa em todos os seus aspectos: contudo, nesta carta não pretendo tratar a questão de uma forma exaustiva. Antes, desejo oferecer algumas pistas de reflexão que podem ajudar na contemplação da beleza e da verdade da celebração cristã. (art. 1)

2 – A CELEBRAÇÃO DO CULTO É UM LUGAR DE UNIDADE

Com o seu motu proprio de 16 de Julho de 2021, Francisco quis recordar que a Missa era por excelência o sacramento da unidade. Mais uma vez, ele evoca esta dimensão na carta apostólica.

Gostaria que a beleza da celebração cristã e as suas necessárias consequências na vida da Igreja não fossem desfiguradas por uma compreensão superficial e redutora do seu valor ou, pior ainda, pela sua instrumentalização ao serviço de qualquer visão ideológica. A oração sacerdotal de Jesus na Última Ceia para que todos possam ser um (Jo 17,21), coloca todas as nossas divisões junto ao do Pão partido, sacramento da piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade. (art. 16º)

A liturgia não diz “eu” mas “nós” e qualquer limitação do alcance deste “nós” é sempre demoníaca (art. 19)

3 – A LITURGIA DEVE SER CELEBRADA COM CUIDADO E OBEDIÊNCIA

Mais uma vez, o Papa Francisco sublinha a importância de respeitar os textos que nos dizem como celebrar. Fazer o contrário seria arriscar o subjetivismo. Esta insistência é também uma forma de não endossar liturgias descuidadas.

A contínua redescoberta da beleza da liturgia não é a busca de um ritual estético que só tem prazer na formalidade exterior de um rito ou que se contenta com uma observância escrupulosa das rubricas. É claro que esta afirmação não pretende endossar a atitude oposta que confunde simplicidade com banalidade desleixada, essencialidade com superficialidade ignorante, ou a concretude da ação ritual com funcionalismo prático exasperante (art. 22).
Sejamos claros: todos os aspectos da celebração devem ser tratados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música, …) e todas as rubricas devem ser respeitadas. (art. 23)

4 – O MARAVILHAMENTO COMO REMÉDIO PARA A FALTA DE SACRALIDADE

Uma crítica frequentemente feita pelos opositores à Missa resultante da reforma litúrgica do Vaticano II é que ela carece de sacralidade, que é demasiado horizontal. Para contrariar esta crítica, que ele considera injustificada, o Papa Francisco convida as pessoas a maravilharem-se.

Esta é, por vezes, uma das principais acusações contra a reforma litúrgica. Diz-se que a sensação de mistério foi retirada da celebração. O maravilhamento de que falo não é uma espécie de perplexidade perante uma realidade obscura ou um rito enigmático, mas é, pelo contrário, a maravilha do fato de que o propósito salvífico de Deus nos foi revelado. […] Se o maravilhamento é verdadeiro, não há risco de não percebermos, mesmo na proximidade querida pela Encarnação, a alteridade da presença de Deus. Se a reforma tivesse eliminado este vago “sentido de mistério”, seria uma nota de mérito e não uma acusação. (art. 25)

5 – AS DISPUTAS LITÚRGICAS TÊM UMA DIMENSÃO ECLESIOLÓGICA

Este era o coração do motu proprio Traditionis custodes: se alguns rejeitam a Missa de São Paulo VI e a concelebração, é por razões mais profundas, ligadas à compreensão do que é a Igreja, explicitadas na Constituição dogmática Lumen gentium do Concílio.

Seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação a uma forma ritual. O problema é acima de tudo eclesiológico. Não vejo como se pode dizer que se reconhece a validade do Concílio – embora me surpreenda que um católico possa afirmar não o fazer – e não aceitar a reforma litúrgica nascida do Sacrosanctum Concilium, um documento que expressa a realidade da liturgia em íntima ligação com a visão da Igreja admiravelmente descrita pela Lumen Gentium (art. 31).

6 – UMA NECESSIDADE: FORMAÇÃO LITÚRGICA PARA TODOS

Para que todos possam aproveitar ao máximo as celebrações litúrgicas para o seu próprio bem espiritual, mas também para que aqueles que estão relutantes em aceitar a reforma litúrgica possam aderir à mesma, só há uma solução: a formação! O objetivo principal da carta “sobre a formação litúrgica do povo de Deus”.

A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial da mesma, distrai-nos da tarefa de encontrar as respostas à pergunta que estou sempre a repetir: como podemos crescer na capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? Como podemos continuar surpreendidos com o que está a acontecer na celebração perante os nossos olhos? Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital. (art. 31)

7 – REDESCOBRINDO A CORPORALIDADE ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO LITÚRGICA

Num mundo cada vez mais virtual e, ao mesmo tempo, obcecado pela aparência, o Santo Padre vê a liturgia como uma escola para habitar e conhecer a nossa corporalidade.

A nossa abertura ao transcendente, a Deus, é constitutiva: não reconhecê-la leva-nos inevitavelmente não só a uma falta de conhecimento de Deus, mas também a uma falta de conhecimento de nós próprios. Basta olhar para a forma paradoxal como o corpo é tratado, num momento quase obsessivamente cuidado, inspirado pelo mito da eterna juventude, e noutro tempo reduzindo o corpo a uma materialidade a que é negada toda a dignidade. O fato é que o corpo não pode ser dado valor apenas com base no próprio corpo (art. 44º).

8 – A IMPORTÂNCIA DO SILÊNCIO

A Cardeal Sarah escreveu um livro sobre isto, La Force du silence. O Papa Francisco também quer enfatizar o silêncio, que não é um tempo extra, mas um momento integrante nas celebrações. Um momento durante o qual o Espírito Santo pode respirar.

Entre os gestos rituais que pertencem a toda assembleia, o silêncio tem um lugar de importância absoluta. Muitas vezes é expressamente prescrito nas rubricas. Toda a celebração eucarística está imersa no silêncio que precede o seu início e marca cada momento do seu desenvolvimento ritual. [Tal silêncio não é um refúgio interior no qual se possa esconder numa espécie de isolamento íntimo, como se se estivesse a deixar para trás a forma ritual como distração. Este tipo de silêncio iria contradizer a própria essência da celebração. O silêncio litúrgico é algo muito maior: é o símbolo da presença e da ação do Espírito Santo que anima toda a ação da celebração. (art. 52º)

9 – OS “MALES” DO PADRE QUE QUER SER O CENTRO DAS ATENÇÕES

O Papa Francisco está familiarizado com este modo de expressão. Para melhor expressar a atitude em que o padre deve presidir à Eucaristia, ele enumera uma série de falhas paradoxais. Surge a figura do pastor que não procura estar no centro das atenções.

Poder-se-ia dizer que existem diferentes ‘modelos’ de presidir. Segue-se uma possível lista de abordagens que, embora se oponham umas às outras, caracterizam uma forma de presidir certamente inadequada: austeridade rígida ou criatividade exasperante, misticismo espiritualizador ou funcionalismo prático, vivacidade apressada ou lentidão exagerada, descuido ou meticulosidade excessiva, simpatia exagerada ou impassibilidade sacerdotal. Apesar da grande variedade destes exemplos, acredito que a inadequação destes modelos de presidência tem uma raiz comum: um personalismo exagerado no estilo de celebração que por vezes exprime uma mania mal disfarçada por ser o centro das atenções. (art. 54º)

10 – A BUSCA DO PAPA POR PACIFICAÇÃO

Os fiéis ligados à Forma Extraordinária do Rito Romano esperavam por isto: um sinal paternal de Roma. Antes de concluir a sua carta, o Vigário de Cristo reitera tanto as razões que o levaram a publicar Traditionis custodes, como, ao mesmo tempo, o seu desejo de pôr fim às disputas em torno da liturgia.

Somos chamados a redescobrir constantemente a riqueza dos princípios gerais estabelecidos nos primeiros números da Sacrosanctum concilium, captando a ligação íntima entre esta primeira constituição do Concílio e todas as outras. [Por esta razão escrevi Traditionis custodes, para que a Igreja possa levantar, na variedade de tantas línguas, uma única oração capaz de expressar a sua unidade. Como já escrevi, pretendo que esta unidade seja restabelecida em toda a Igreja do Rito Romano (art. 61).

Abandonemos as nossas polémicas e escutemos juntos o que o Espírito está a dizer à Igreja. Salvaguardemos a nossa comunhão. Continuemos a maravilhar-nos com a beleza da liturgia. A Páscoa foi-nos dada. Sejamos resguardados pelo desejo contínuo do Senhor de comer conosco a sua Páscoa. Sob o olhar de Maria, Mãe da Igreja (art. 65)

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