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A responsabilidade de nós, que temos fé, para com a laicidade

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 03/07/22

Não podemos nos dobrar ao argumento laicista que considera uma proposta inadequada só porque seus proponentes são pessoas religiosas

As democracias contemporâneas são Estados laicos, que devem dar igual apoio a todas as religiões, pois a dimensão religiosa é inerente a todo ser humano e como tal deve ser desenvolvida, e não permitir que nenhuma seja imposta. Creio que todos os leitores desse artigo já conhecem e concordam com essa afirmação. Contudo, ela é bastante polêmica na sociedade atual – e parece ter grande peso nas eleições que se aproximam.

Nas mídias religiosas ou simpatizantes de uma religião, os artigos sobre esse tema sempre enfatizam que o Estado laico não persegue as religiões e deve garantir o direito às práticas religiosas; enquanto nas demais quase sempre se usa o laicismo para desqualificar a religião no debate social. Cria-se um impasse: cada um prega para os próprios “convertidos”, ficando sempre mais convencido de estar certo; o diálogo não acontece e a força política, descolada de qualquer compromisso com a verdade, se torna o argumento decisivo.

Quando escrevo ou dou entrevistas para veículos claramente agnósticos ou ateus, sempre defendo o direito de expressão das religiões na vida pública. Aqui, porém, dirigindo-me a leitores católicos, pareceu-me importante responder a uma outra pergunta: o que temos de fazer para dialogar e convencer os bem-intencionados do direito e do valor das religiões para a vida pública? Aviso que falo dos bem-intencionados porque (1) eles são numerosos, mas (2) também existem os mal-intencionados, que não se deixarão convencer por nenhum argumento. 

Duas distorções escandalosas

Bento XVI lembra que a fé não pode agir contra a razão, ainda que muitas vezes a própria fé tenha a missão de alargar a razão. Deus quer o bem do ser humano e uma religião que não esteja a serviço deste bem não pode ser verdadeira. Nesse sentido, temos que reconhecer que a laicidade do Estado não pode permitir que fanáticos de uma religião matem crentes de outra ou atentem contra o bem comum.

A mercantilização da fé popular pode ser tão ou mais escandalosa do que o fanatismo. O serviço religioso é uma utilidade pública, pois todo ser humano tem necessidade de uma resposta religiosa para suas perguntas últimas – a própria negação da existência de Deus não deixa de ser uma resposta à questão religiosa (não é à toa que tantos ateus lembram fanáticos religiosos em seu ateísmo). Mas, por exemplo, se torna difícil defender isenções de taxas a igrejas, quando se constata que alguns líderes religiosos têm vida de nababo sustentada por dízimos e contribuições do povo pobre.

A racionalidade que ilumina o diálogo

Os princípios que a doutrina social da Igreja sugere para a organização da vida social não são confessionais. Nascem da reflexão racional, iluminada pela fé, que os cristãos vêm fazendo, ao longo de sua história, a partir da observação da natureza humana e dos acontecimentos. Sendo assim, sempre poderemos (e deveremos) explicar esses princípios e suas consequências mostrando como podem tornar as pessoas mais felizes e construir o bem comum (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 72-84).

A convicção racional nunca é apenas lógica. Temos a tentação de querer obrigar o outro a aceitar nossos argumentos intelectuais, como se isso esgotasse a verdade. Mas a convicção racional depende não só de argumentos teóricos, mas também da demonstração prática de sua veracidade nos acontecimentos e de uma abertura afetiva (que poucas vezes reconhecemos, mas é provavelmente o fator mais forte a determinar nossas convicções). Um diálogo eficaz, que deixe os interlocutores mais próximos da verdade, depende não só de argumentos, mas também das experiências concretas que são mostradas e da amizade sincera que se estabelece entre ambos, que os leva a confiar e querer o bem um do outro.

A aversão a qualquer norma

A dominação das consciências na sociedade moderna se baseia numa dicotomia entre o privado (onde tudo que não prejudique o outro deve ser permitido) e o público (cada vez mais vigiado e controlado tanto por recursos tecnológicos e leis quanto por comportamentos coletivos, como o cancelamento social). Trata-se de uma dicotomia ilusória, pois o público e o privado se entrelaçam o tempo todo, de tal modo que a dominação é cada vez mais ampla e mais interiorizada no coração das pessoas.

Nesse contexto ideológico, a autonomia da instintividade (que um cristão não deveria confundir com liberdade) se torna um valor absoluto. Qualquer elemento externo que busque disciplinar a instintividade ou apenas alertar sobre seus perigos aparece como imposição despótica. Na prática, a dominação não deixa de existir, apenas se camufla em autonomia ilusória. Mas as religiões são exatamente o oposto dessa lógica. Elas nos exortam a sermos bons, alerta para os perigos do erro, indica condutas virtuosas. Com sua sabedoria e suas normas explícitas, as religiões são a negação da liberalidade inconsequente e da dominação subliminar sobre as quais se assenta o poder na sociedade contemporânea. Essa é a verdadeira causa das cruzadas laicistas em nosso meio.

Essa mentalidade, contudo, se afirma a partir de uma falha do mundo religioso tradicional. A palavra autoridade designa originalmente alguém que não apenas ordena, mas também faz crescer e se desenvolver (como o autor de uma obra). A ideia de uma autoridade religiosa, paterna ou materna evoca essa missão dos bons líderes e dos pais de nos ajudarem a sermos melhores e mais felizes. Mas muitas vezes a autoridade e suas normas se apresentam apenas como imposições que não ajudam o crescimento pessoal.

Quem experimentou a autoridade só como imposição não pode entender o papel das religiões numa sociedade plural, pois lhe falta essa vivência de uma autoridade que nos ama de fato e nos ajuda a crescer. Se queremos combater o laicismo, temos que ser essa boa autoridade para os jovens e para com todos que se aproximam de nós.

Mostrar o valor da sabedoria religiosa

Numa democracia plural, a validade de uma proposição não depende de quem é o seu formulador, mas do quanto pode contribuir para a justiça e o bem comum. Não importa se veio de um grupo majoritário ou de uma minoria, de um líder religioso ou de um militante laicista, da esquerda ou da direita. Frequentemente se alega que as proposições vêm “da ciência”. Ledo engano, a ciência não propõe nada, apenas descreve as causas e consequências do que acontece – são as lideranças sociais (que, em alguns casos, mas não em todos, também são cientistas) que interpretam as conclusões científicas e propõem ações.

Se a sabedoria religiosa, seja qual for o credo, orienta ações que tornam a sociedade mais justa, deve ser aplicada nas políticas públicas e normas sociais. Não podemos nos dobrar ao argumento laicista que considera uma proposta inadequada só porque seus proponentes são pessoas religiosas. Porém, temos que ter sempre claro que nossas razões devem ser apresentadas com categorias e argumentos que possam ser compreendidos e compartilhados por quem não tem fé. Conciliar essas duas exigências (direito de expor nossas ideias e necessidade de formulá-las de modo compreensível ao outro) é a missão que nos cabe, não só para combater o cancelamento cultural do qual os cristãos são vítimas, mas principalmente porque o mandamento do amor nos leva a lutar pelo bem comum.

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PolíticaReligiãoSociedade
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