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Caso Archie: a justiça tem o poder de acelerar a morte de crianças doentes em estado irreversível?

Caso Archie Battersbee

fot. Media Drum/East News / Guardian News | YouTube

Francisco Vêneto - publicado em 08/08/22

Magistrados se escoram numa ideologia obscuramente subjetiva: a de que a morte compulsória seria do "melhor interesse" do paciente

Uma das questões prementes levantadas pelo caso Archie Battersbee deveria provocar calafrios imediatos em qualquer cidadão que preze pela genuína democracia e pela própria liberdade: a justiça tem o poder de acelerar a morte de uma criança doente em estado irreversível?

A pergunta, aliás, pode ficar ainda mais sombria: a justiça tem o poder de acelerar a morte de uma criança doente em estado irreversível à revelia dos pais dela?

O caso Archie

Na manhã deste sábado, 6 de agosto de 2022, por determinação da justiça britânica e apesar da firme objeção dos próprios pais, o menino Archie Battersbee, de 12 anos, teve os seus aparelhos de suporte vital desligados.

O pedido de desligamento partiu de médicos do próprio Royal London Hospital. Duas horas depois do desligamento compulsório, Archie partiu para a Casa do Pai – muito embora, segundo os médicos, ele já estivesse morto.

Archie estava em coma desde 7 de abril, quando foi encontrado inconsciente em casa. Seus pais acreditam que ele estava participando de um dos estúpidos e criminosos “desafios online” que proliferam pelas redes sociais debaixo da inércia bovina de governos e entidades afoitas por “regular” as redes – dado que a “regulação” que pretendem é muito mais voltada a calar a boca dos seus críticos do que a proteger de fato a população. Nos moldes de aberrações como o “desafio da baleia azul”, de 2017, que induzia crianças a “cumprirem tarefas” de automutilação, o que parece ter levado Archie ao estado de coma foi o igualmente tétrico “desafio do apagão”, que induz crianças a apertarem o próprio pescoço até perderem a consciência.

Os médicos diagnosticaram que o cérebro de Archie havia sofrido danos irreversíveis e quiseram desligar os aparelhos que o mantinham vivo, mas os pais do menino, Paul Battersbee e Hollie Dance, discordaram enfaticamente. Ressaltando que o coração do filho continuava a bater e relatando que Archie chegava a segurar a mão da mãe, eles queriam manter o seu suporte vital por mais que não houvesse perspectivas médicas de recuperação do menino. Queriam, em suma, exercer o seu direito de prestar todos os cuidados possíveis ao filho até que a morte acontecesse naturalmente – em vez de ser acelerada por uma intervenção humana imposta pela justiça.

Mais uma batalha judicial perdida para a ideologia

Paul e Hollie enfrentaram – e perderam – uma dolorosa batalha judicial para livrar o filho da eutanásia compulsória e garantir que ele permanecesse vivo, ainda que sem chances de recuperação, recebendo os cuidados disponíveis e merecendo pelo menos o básico do respeito à vida humana, até que se esgotassem naturalmente todos os seus recursos vitais, sem nenhuma intervenção humana cujo propósito fosse o de antecipar a sua morte.

A batalha que eles perderam vem sendo perdida sistematicamente por todos os pais ingleses que tentaram defender os seus filhos de uma sinistra ideologia em que se escora a “justiça” do seu país: a de que decretar a aceleração da morte de pacientes em estado irreversível, independentemente da oposição da família, represente o seu “melhor interesse”.

Foi assim em 2017 com o bebê Charlie Gard. Foi assim em 2018 com os bebês Alfie Evans e Isaiah Haastrup. Foi assim em 2021 com a bebê Alta Fixsler. Foi assim em 2022 com o menino Archie Battersbee.

E a tendência é que continue sendo assim com dezenas de outras crianças, enquanto sociedades anestesiadas, dentro e fora do Reino Unido, continuarem achando evoluído e civilizado que receber uma sentença de morte da justiça a pedido do hospital e à revelia de pai e mãe seja do “melhor interesse” de um ser humano de poucos meses ou anos de vida, que luta por sobreviver em circunstâncias extremas, por mínimas que sejam as suas chances de melhora.

Em todos estes casos, e em mais alguns que repercutiram na mídia com menos intensidade, os pais das crianças rechaçaram firmemente a sentença de morte dos seus filhos. Eles apelaram a todos os níveis da justiça e perderam a batalha sob a mesmíssima justificativa, nebulosamente genérica e patentemente ideológica: a de que a morte seria, indefectivelmente, do seu “melhor interesse”.

Que “melhor interesse” é esse?

Grosso modo: quando ocorre um conflito inconciliável de opiniões entre um hospital e os pais de uma criança doente em estado irreversível, a legislação britânica determina que a decisão sobre a continuidade do tratamento da criança seja tomada pela justiça. E a justiça, por sua vez, deve priorizar o “melhor interesse” não dos pais, mas sim da criança.

À primeira vista, parece razoável. E, de fato, faria sentido, por exemplo, que um magistrado contrariasse os pais se eles tentassem impedir, por razões de crença, que o filho recebesse uma transfusão de sangue ou um transplante de órgão. Num caso desses, o juiz sentenciaria que o hospital fizesse a operação a contragosto da família a fim de salvar a vida do paciente, já que o “melhor interesse” da criança é, obviamente, que o seu direito à vida esteja acima do direito da sua família à liberadade de crença.

O que causa profundo espanto e repulsa, porém, é que, sistematicamente, a justiça britânica venha colocando a sua própria crença ideológica acima do direito dos pais a decidirem em favor da vida do filho; pior ainda: que a justiça britânica venha colocando a sua crença ideológica acima do próprio direito da criança a continuar viva independentemente da opinião de quem quer que seja e a despeito dos mais negativos prognósticos.

Um conceito relativo da vida humana

Em que se baseia a tese de que a morte seria, invariavelmente, do “melhor interesse” desses pequenos pacientes?

Baseia-se no conceito que os magistrados têm da vida humana. E que conceito será esse?

Por observação dos casos registrados, pode-se aferir que não é um conceito que reconheça valor absoluto à vida humana, mas sim valor relativo, variável conforme circunstâncias: há vidas que merecem ser preservadas e vidas que devem ser abreviadas.

Mas com base em que critério?

Eis a questão e eis o horror: não há critério algum, justamente porque o conceito do valor de uma vida humana é submetido a uma análise subjetiva de circunstâncias em vez de ser reconhecido como absoluto sejam quais forem as circunstâncias.

É nessa relativização do valor de uma vida humana que se baseia o suposto “poder” do Estado de “direito” de ditar que o suporte vital de uma criança em estado irreversível lhe seja arrancado à força de ordem judicial, atropelando a vontade dos seus pais, para que morra o quanto antes e deixe de ser um fardo para o hospital. Este seria o “melhor interesse” da criança porque assim falou o juiz. Sutilezas retóricas à parte, é exatamente o que foi perpetrado em todos os casos mencionados.

O “embasamento” de uma “justiça” desse naipe não existe nem sequer de uma perspectiva meramente utilitarista, já que, em todos esses mesmos casos, os pais das crianças se comprometeram a bancar, do próprio bolso e com ajuda de donativos vindos do mundo inteiro, todos os custos hospitalares, sem consumir um tostão das verbas públicas britânicas. Não restava aos magistrados, portanto, nem mesmo a desculpa, questionável em si mesma, de preservar recursos para pacientes com mais chances de sobrevivência.

Aliás, pouco deveria importar que as chances de recuperação da criança fossem dramaticamente exíguas: ainda que fossem nulas, os pais jamais deveriam ser judicialmente obrigados a aceitar que o hospital decidisse acelerar a morte do seu filho sem que eles pudessem fazer absolutamente nada.

Alguém poderia alegar que os médicos também não deveriam ser obrigados a tratar de um paciente se não quisessem. Esta afirmação, no entanto, é de uma falsidade grosseira: os médicos são, sim, obrigados por juramento e por ética básica a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para salvar uma vida, e mesmo nos casos extremos em que precisam priorizar uma vida em relação a outra, o critério jamais é o de matar um para salvar o outro, mas o de priorizar a salvação de um enquanto adotam paliativos para suavizar o sofrimento do outro, caso não haja nenhuma outra possibilidade.

E mesmo que fosse aberrantemente legítimo que um médico se recusasse a salvar uma vida por não achá-la digna de continuar existindo, ainda assim a família do paciente deveria ter garantido o seu direito de transferi-lo para outro hospital – mas até isso foi negado pela justiça britânica. A ordem judicial era clara e inapelável: Archie deveria morrer e ponto final.

Ainda que haja historicamente um suposto “embasamento jurídico” para a decisão dos magistrados britânicos, conforme eles próprios alegam, continua não existindo embasamento ético algum para uma sentença dessa natureza.

Então o que deveria ser feito?

Num inquestionável primeiro lugar, deveria priorizar-se a vida.

Em segundo lugar, no caso de não haver definitivamente mais nenhuma chance de recuperação ao alcance conhecido da medicina, deveria priorizar-se a decisão dos pais, familiares ou legítimos responsáveis em favor de manter o paciente em vida até a sua morte natural e inevitável. Isto vale inclusive para o caso de morte cerebral, quando existe, licitamente, a possibilidade de doação de órgãos: nem mesmo essa doação pode ser feita à força, sem permissão deixada expressamente pelo próprio paciente ou, em sua falta, concedida legitimamente pelos seus familiares ou responsáveis reconhecidos.

O caso é que jamais, por motivo algum, em hipótese alguma, deveria ser sequer cogitável que uma decisão de terceiros em favor da morte do paciente tivesse alguma chance de ser priorizada em relação ao critério da vida do paciente, em primeiro lugar, e ao critério da decisão pró-vida dos seus legítimos responsáveis, em segundo lugar.

Morte natural

Em que consistiria, afinal, a morte natural?

É a morte que se deixa acontecer e que acontece “por sua própria conta”, quando todos os recursos à disposição para sustentar a vida se esgotaram ou deixaram de ser eficazes.

Não importa se tais recursos eram artificiais: um cobertor que aquecia o enfermo, um remédio que aliviava as suas dores, um aparelho que lhe fornecia o oxigênio. A “naturalidade” da morte consiste no processo em que se morre porque se esgotaram todos os recursos disponíveis para que a vida fosse mantida, deixando que a natureza determine, mesmo dispondo de recursos artificiais, o instante em que a vida acaba porque esses recursos deixaram de ser suficientes para mantê-la.

Por conseguinte, a morte não-natural é aquela em que uma intervenção humana, imputável e determinante, impediu o acesso a um recurso possível e disponível, ainda que artificial, para manter a vida até o seu auto-esgotamento; é a morte que foi “acelerada” mediante a supressão de um meio a que a vida recorria pelo seu próprio e natural código de autopreservação.

Também é antinatural, no outro extremo, querer driblar a morte insanamente por obstinação terapêutica, tentando impedi-la de modo vão quando todos os recursos disponíveis e viáveis já foram esgotados e a própria tentativa de prolongar a vida artificialmente é causa apenas de sofrimento inútil e desproporcional, sem qualquer perspectiva de reversão, nem mesmo mínima.

Em todos os casos mencionados acima, os pais das crianças em gravíssimas condições de saúde queriam tentar o que ainda restasse ao seu alcance para que os filhos tivessem mais alguma chance, por mínima que fosse, de continuar tentando sobreviver e, talvez, de obterem uma cura. Este era o caso, nomeadamente, de Charlie e Alfie, a quem chegaram a ser oferecidas terapias experimentais nos Estados Unidos e na Itália – sempre negadas pela justiça britânica.

Sim, é perfeitamente lícito questionar se, em alguns desses casos, como o de Archie, os pais não estavam incorrendo em obstinação terapêutica. Vamos supor que estivessem: por acaso isso daria ao Estado o direito de decidir de modo impreterível e inapelável, no lugar deles e à sua revelia, sobre a vida e a morte do seu filho doente?

Isto nos traz, enfim, à discussão-chave:

A justiça tem o poder de obrigar à aceleração da morte?

Significativamente, esta pergunta não costuma ser colocada com esta clareza e objetividade.

A questão que costumeiramente domina a maior parte das discussões em torno a casos como o de Archie é de caráter bioético: se as chances de cura são extremamente remotas ou mesmo nulas, vale a pena prorrogar indefinidamente a vida vegetativa do paciente? De fato, a maior parte dos apoiadores do desligamento compulsório do suporte vital parece focar em argumentos como “sofrimento inútil”, “esgotamento dos recursos da medicina”, “chances irreais de cura” etc.

Mas, alarmantemente, grande parte dos opinadores parece não enxergar com clareza a questão do direito: é o Estado, por meio do poder judiciário, quem decide a resposta para a questão bioética?

Traduzindo: a justiça tem poder legítimo para obrigar um pai e uma mãe a desligarem os aparelhos que mantêm o seu filho vivo? A justiça tem a prerrogativa de proibir um casal de lutar pela vida do próprio filho? E, caso a justiça tenha tal autoridade, em que ela se baseia?

Em que princípios se fundamenta um Estado que tem esse grau de poder? Acaso o Estado democrático que desejamos tem poder sobre a vida e a morte dos seus cidadãos, à revelia da vontade e dos recursos desses mesmos cidadãos?

O “caso Archie”, assim como os casos Charlie, Alfie, Isaiah e Alta, não ficam “apenas” na dimensão bioética – que já seria suficiente para deixar clara a preponderância do direto à vida acima de quaisquer outros. Estes casos também nos fazem pensar sobre que tipo de Estado nós queremos e quais são as suas prerrogativas sobre nós, cidadãos supostamente livres.

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