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Afeganistão sob talibãs, 1 ano hoje: povo vende crianças e órgãos para matar a fome; padre quer voltar

mulher desesperada

Mandy Fontana via Pixabay | CC

Francisco Vêneto - publicado em 15/08/22

A mídia, rapidamente saturada, foi procurar outras tragédias para entreter o público-alvo de seus anunciantes

O Afeganistão está sob os talibãs há exatamente um ano completado hoje – mas quem ainda se importa?

15 de agosto de 2021

Os dias seguintes ao 15 de agosto de 2021 preencheram as pautas dos telejornais com imagens estarrecedoras vindas de Cabul, entre as quais o surreal registro de pessoas desabando dos céus ao tentarem fugir desesperadamente do país, agarradas à fuselagem dos últimos e poucos aviões que ainda conseguiram decolar de um aeroporto sitiado.

Mas o desespero não partiu entre as pessoas espremidas como gado em aviões cargueiros. Ele permaneceu entre as pessoas que nem tiveram a chance de escapar, submetidas a um dos regimes mais repressivos da história recente da humanidade.

Com o passar das semanas, a tragédia dos afegãos foi sendo relegada cada vez mais aos próprios afegãos. A mídia, rapidamente saturada, foi procurar outras tragédias para entreter o público-alvo de seus anunciantes.

Enquanto isso, os afegãos continuaram sendo tragados por um vórtice de desgraças.

O país já vinha de anos de guerras civis ou contra potências invasoras desde a agressão soviética de 1979. Em 2001, no contexto da Guerra ao Terror declarada pelo governo dos Estados Unidos para desbaratar a rede terrorista Al-Qaeda, forças militares norte-americanas também invadiram o Afeganistão e derrubaram o regime talibã, estabelecendo-se no país durante quase 20 anos.

Em agosto de 2021, apesar de importantes avanços em liberdades civis e infraestruturas, a precariedade de vida permanecia largamente estendida no Afeganistão. A expansão das tropas talibãs sobre o território voltava a ganhar ímpeto: os rebeldes haviam resistindo ao longo das duas décadas de ocupação sem que sequer o exército norte-americano pudesse derrotá-los. No dia 15, já dentro do contexto da saída anunciada dos EUA e dos seus aliados, os talibãs aceleraram a sua ofensiva e retomaram o controle de Cabul.

Uma visão do inferno

A já frágil economia do Afeganistão, sob os talibãs, entrou rapidamente em colapso. As mulheres tiveram praticamente todos os seus direitos civis revogados. A ajuda internacional, imprescindível, foi severamente restringida pelas sanções ocidentais aos talibãs. Como se não bastasse o caos institucional, o país está enfrentando secas históricas e, para piorar o quadro já trágico da falta de comida, ainda foi brutalmente afetado pela alta dos preços dos alimentos em consequência da guerra na Ucrânia. Em junho, sofreu o terremoto mais violento das últimas duas décadas, com mais de mil mortos, três mil feridos, milhares de desabrigados e um surto de cólera que levou milhares de pessoas a procurar – e não conseguir – atendimento hospitalar, já que os hospitais, em péssimas condições, já estava sobrecarregados desde muito antes.

De fato, a crise sanitária desatada pela fome é aterrorizante. Mulheres grávidas não têm o que comer, passam por partos prematuros e, por consequência, dão à luz bebês muito enfraquecidos.

Segundo Organização Mundial da Saúde (OMS), milhares de crianças foram internadas em 2022 em situações de emergência pela desnutrição aguda. Só na faixa de 0 a 5 anos há 1,1 milhão de crianças afegãs com desnutrição grave e riscos altíssimos de desenvolver sérios problemas de saúde. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) atenderam, neste primeiro semestre de 2022, conseguiram atender cerca de 3.700 crianças desnutridas no Afeganistão dos talibãs.

O quadro se estende à população inteira: nada menos que 95% dos 39 milhões de afegãos se alimentam hoje de forma insuficiente. Cerca de 20 milhões de habitantes, dos quais 9,2 milhões são crianças, enfrentarão insegurança alimentar aguda neste ano, segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA). A província de Ghor já atingiu o nível 5 de desnutrição aguda segundo o sistema de avaliação do PMA: trata-se do nível máximo, considerado “catastrófico”.

Famílias estão sendo obrigadas a extremos inconcebíveis para tentar conseguir comida: casamentos de meninas adolescentes em troca de dotes; venda de partes do próprio corpo, sobretudo rins; e, horror dos horrores, venda de crianças, para que tanto elas quanto seus irmãos tenham “mais chances” de não morrer de fome.

O pe. Giovanni quer voltar

Há quem ainda anseie, no entanto, por voltar ao Afeganistão e retomar o trabalho em prol do povo do país.

É o caso do pe. Giovanni Scalese, missionário italiano, membro da congregação dos clérigos regulares de São Paulo, conhecidos como barnabitas. Ele era superior da missão católica no Afeganistão, além de responsável pela paróquia de Nossa Senhora da Divina Providência, a única da Igreja em todo o território afegão. A capela se localizava dentro da embaixada italiana.

O sacerdote forçado a deixar a única igreja católica do Afeganistão fez um breve e triste relato das últimas horas vividas no país antes de embarcar num voo militar junto com cinco religiosas da congregação da Santa Madre Teresa de Calcutá e 14 crianças deficientes que residiam no orfanato mantido pela Igreja em Cabul. Ao chegar a Roma, ele declarou:

“Continuamos orando pelo Afeganistão. Não podemos abandonar esse país e o seu povo sofredor”.

O padre e as Missionárias da Caridade só conseguiram trazer consigo 14 das mais de 60 crianças de quem cuidavam no centro de atendimento para pessoas deficientes que a Igreja mantinha em Cabul desde 2006. As outras crianças, infelizmente, tiveram de permanecer no país. Seu futuro, assim como o do seu povo, era incerto há um ano e continua incerto até hoje.

Incertos também foram os dias anteriores à partida das freiras e do padre com as poucas crianças que puderam retirar de Cabul. O pe. Giovanni relatou à mídia italiana:

“Do lado de fora dos portões da nossa embaixada, havia talibãs que, se quisessem nos prejudicar, poderiam ter prejudicado. Mas não aconteceu absolutamente nada. Fiquei mais preocupado com as Missionárias da Caridade, que ficaram na sua casa e, portanto, estavam mais expostas e assustadas”.

Antes de conseguir embarcar, o grupo viveu uma tentativa frustrada na véspera: chegaram a se dirigir ao aeroporto, mas tiveram que dar meia-volta.

“Só conseguimos passar pela entrada na outra noite. Não foi fácil passar por tanta gente e por aquela tensão enorme. O Talibã, entre outras coisas, emitiu um aviso de que fecharia as vias do aeroporto para os afegãos e permitiria somente a passagem de estrangeiros. Assim que chegamos, eles nos embarcaram num voo militar que fez uma escala no Kuwait antes de chegar a Roma”.

A única igreja católica do Afeganistão foi então fechada.

O sacerdote conta que não esperava que a saída do Afeganistão sob os talibãs tivesse de ser “tão repentina e abrupta”:

“Todos esperávamos uma conclusão mais negociada, um governo de transição ou de unidade nacional. Mas, em poucos dias, tudo desmoronou: governo, exército, forças policiais. O Talibã nem lutou para tomar o poder: simplesmente assumiram o controle. Isso teve um lado bom, em parte, porque evitou um banho de sangue. Já houve mortes, mas não é uma guerra civil”.

O pe. Giovanni espera voltar um dia àquele martirizado país para retomar o trabalho da Igreja entre seu povo.

Transcorrido já um ano, porém, este é um cenário que continua muito difícil de se vislumbrar no horizonte do Afeganistão sob os talibãs.

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