1O Papa Francisco defende uma "laicidade saudável" perante as autoridades cazaques
Por Camille Dalmas, Cazaquistão - "A liberdade religiosa é o melhor berço da coexistência civil", disse o Papa Francisco às autoridades cazaques reunidas na Sala de Concertos do Cazaquistão, em Nur-Sultan, a 13 de Setembro. Na presença do Presidente Kassym-Jomart Tokayev, o Papa elogiou a "laicidade saudável" deste país da Ásia Central, que "reconhece o papel precioso e insubstituível da religião e se opõe ao extremismo que a corrói".
Após ter sido recebido pelo chefe de Estado cazaque no palácio presidencial de Ak Orda, o pontífice de 85 anos foi para a grande Sala de Concertos onde os representantes políticos, diplomáticos e religiosos do país aguardavam. O Papa agradeceu às autoridades pelo seu convite para participar no Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais, um encontro inter-religioso que reuniu cerca de 100 representantes espirituais de todo o mundo, que descreveu como um lugar para promover "harmonia e paz".
"Duas almas, uma asiática e uma europeia"
Pintando um retrato de um Cazaquistão secular que respeita as suas tradições, o pontífice salientou a sua vocação como um "país de encontros", nascido, segundo ele, da dolorosa memória dos gulags onde, no século XX, muitas pessoas foram deportadas em massa pelas autoridades soviéticas. Para Francisco, o Cazaquistão é um país com "duas almas, uma asiática e uma europeia", e portanto um lugar privilegiado para o diálogo inter-religioso, mas também, mais amplamente, uma "importante encruzilhada de nós geopolíticos".
Sem mencionar os países vizinhos, nomeadamente a China e a Rússia, o Papa considerou que esta situação de "ponte entre o Oriente e o Ocidente" destinava-o a desempenhar "um papel fundamental na atenuação dos conflitos". Francisco citou especificamente a "guerra insana e trágica causada pela invasão da Ucrânia", bem como outros confrontos em curso no mundo.
Lamentando o efeito destes conflitos nos países em desenvolvimento, o Bispo de Roma apelou ao "grito" dos que apelam à paz a ser "amplificado", convidando os líderes a infundir nas organizações multilaterais "um novo espírito de Helsinque", em referência à conferência de 1975. Insistiu que este compromisso era "assunto de todos" e, portanto, exigia "diálogo com todos".
Contra as armas nucleares
Embora a questão do risco de um conflito nuclear tenha sido levantada no contexto da guerra na Ucrânia, o pontífice não deixou de se congratular com a escolha feita pelo Cazaquistão de renunciar às armas nucleares. Embora tivesse armas nucleares na altura da sua independência em 1991, o país optou voluntariamente por desmantelar esta parte do seu arsenal, um resquício da era soviética.
O Papa Francisco elogiou também o empenho do país da Ásia Central nas políticas "energética e ambiental" e abordou a questão energética, que é central para esta nação rica em recursos. Sobre este ponto, o pontífice denunciou a "injustiça generalizada" que, segundo ele, constitui a "tomada de reféns" de certos países pelo sistema económico global. Exortou o Estado e o setor privado a não limitarem o desenvolvimento económico aos ganhos dos "poucos".
Num discurso cheio de defesa das liberdades fundamentais, o Papa insistiu que a defesa destes direitos não deveria ser reduzida "a proclamações". Uma sociedade civil livre, disse, deve apoiar os trabalhadores e os jovens e proporcionar-lhes "segurança económica". Tal estado de direito, salientou, era "a resposta mais eficaz ao possível extremismo, personalismo e populismo que ameaçam a estabilidade e o bem-estar dos povos".
2A viagem de João Paulo II ao Cazaquistão em 2001, um avanço no antigo espaço soviético
Por Camille Dalmas: A viagem do Papa Francisco ao Cazaquistão é uma oportunidade de olhar para trás para a viagem de João Paulo II, que veio a Astana de 22 a 25 de Setembro de 2001, como parte da sua 95ª viagem apostólica, que depois o levou à Arménia. Alguns dias após os ataques de 11 de Setembro nos Estados Unidos, o pontífice polaco fez questão de manter a sua estadia neste vasto país, predominantemente muçulmano, para enviar uma mensagem de paz e respeito entre religiões e culturas.
Bem recebido já na chegada do seu avião pelo então Presidente Nursultan Nazarbayev, que tinha feito da tolerância religiosa um tema central na integração do seu país na comunidade internacional, o Papa, marcado pelo cansaço e pela doença, tinha mobilizado toda a sua energia em acentos próximos dos apelos proféticos do início do seu pontificado.
"O Cazaquistão, terra de mártires e crentes, terra de deportados e heróis, terra de pensadores e artistas, não tenha medo", disse o Papa polonês no seu primeiro discurso, sublinhando a importância da liberdade religiosa, dez anos após a independência do país. Registrou também a "iniciativa corajosa" tomada pelo governo do Cazaquistão ao renunciar às armas nucleares e ao desmantelamento do local dos testes nucleares de Semipalatinsk, o local da poluição radioativa trágica e de longa duração desde a era soviética.
O Papa veio encorajar a minoria católica, enfraquecida pela partida, nos anos 90, de muitos descendentes de deportados alemães, polacos e lituanos forçados por Estaline a instalar-se nestas estepes inóspitas. Durante a missa celebrada a 23 de Setembro de 2001 na praça da Pátria, em Astana, o Papa sublinhou o valor da colaboração de cristãos e muçulmanos, "empenhados todos os dias, lado a lado, na humilde busca da vontade de Deus".
O apelo contra a violência após o 11 de Setembro
Neste país de cerca de 100 nacionalidades e etnias, o Papa fez um apelo solene contra a violência em reação aos ataques de 11 de Setembro. "Desejo fazer um apelo sincero a todos, cristãos e seguidores de outras religiões, para trabalharem juntos na construção de um mundo sem violência, um mundo que ame a vida, que cresça na justiça e na solidariedade. Não devemos deixar que o que aconteceu aumente as divisões. A religião nunca deve ser uma razão para justificar um conflito", disse o Papa polaco.
"Deste lugar, convido cristãos e muçulmanos a elevar uma intensa oração ao Deus Único Todo-Poderoso, que nos criou a todos, para que o bem fundamental da paz possa prevalecer no mundo", João Paulo II tinha afirmado, convidando a "trabalhar para uma civilização do amor, na qual não haja lugar para o ódio, a discriminação ou a violência". Antes dos representantes do mundo da cultura, reiterou que "o ódio, fanatismo e terrorismo profanam o nome de Deus e desfiguram a imagem autêntica do homem".
O seu encontro com os bispos da Ásia Central dar-lhe-á a oportunidade de reiterar o seu apelo à liberdade religiosa. "Depois do longo Inverno do domínio comunista, que procurou desarraigar Deus do coração do homem", o Papa regozijou-se ao ver as Igrejas locais recuperarem "visibilidade e consistência" e experimentarem "o início de uma época promissora de evangelização".
Visitas a vários países da ex-URSS
Durante a consagração da Catedral de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o Papa saudou a fundação do seminário de Karaganda, que irá formar futuros sacerdotes das repúblicas da Ásia Central. "Agora que o clima político e social foi libertado do peso da opressão totalitária, a necessidade de cada discípulo de Cristo ser a luz do mundo e o sal da terra continua a ser uma necessidade premente. Esta necessidade é ainda mais urgente devido à destruição espiritual herdada do ateísmo militante, mas também devido aos riscos colocados pelo hedonismo e consumismo atuais", advertiu o papa polaco, depois de prestar homenagem aos mártires das perseguições comunistas, muitos dos quais eram da Polónia.
Apesar de o papa nunca ter podido visitar a Rússia, pôde ir a vários países da ex-URSS. Os primeiros foram os três Estados Bálticos - Lituânia, Letónia e Estónia - já em 1993, seguidos pela Geórgia em 1999, Ucrânia em Junho de 2001, Cazaquistão e Arménia em Setembro de 2001, e Azerbaijão em Maio de 2002. Assim, visitou 8 das 15 antigas repúblicas soviéticas. O Papa polaco, que foi um dos arquitetos da queda do comunismo, pôde viajar para as margens da ex-URSS mas nunca pôde visitar o território da Federação Russa, principalmente devido à desconfiança dos líderes da Igreja Ortodoxa Russa.