Frequentemente ouvimos falar duma “sã laicidade” que se contrapõem ao “laicismo militante”. Por laicidade, entendemos a independência e autonomia da comunidade religiosa em relação à política e vice-versa. Já há muito, a Igreja reconhece que a vida política das nações é uma responsabilidade dos leigos de cada país – e que a instituição religiosa deve manter um adequado distanciamento das decisões políticas e partidárias (cf. Gaudium et spes, GS 76). De igual modo, não cabe ao Estado interferir nas crenças religiosas dos cidadãos ou querer administrar os princípios da fé, constituindo “religiões estatais”.
Contudo, a fé inspira valores morais, ideais de convivência mútua e construção do bem comum que podem e devem orientar os fiéis em suas escolhas e trabalhos políticos. Note-se que essa é uma prerrogativa de todas as religiões, não só das cristãs. Podemos questionar alguns princípios dessa ou daquela crença, lembrar que, nesse caminho de construção social, a fé e a razão devem andar juntas, mostrar que não se pode admitir a violência e a prepotência de uma religião sobre as demais. Contudo, em linhas gerais e como princípio, todas as religiões têm igual direito de iluminar a vida pública de seus crentes.
A fé questionada
O laicismo é justamente a negação desse direito da experiência religiosa de ter voz na vida pública. Nas democracias modernas, não implica em perseguição física às pessoas religiosas, mas num processo de cancelamento cultural, que lhes nega o direito de expressar seus valores e princípios, censurados em função da imagem preconceituosa de que se tratam de ideias irracionais, fundamentalistas e autoritárias.
É inegável que a modernidade iluminista é marcadamente laicista. Grande parte dos pensadores e líderes modernos acreditam que a razão irá demonstrar que Deus não existe ou, se existe, não incide na vida das pessoas e sociedades. Sendo assim, qualquer pretensão religiosa seria um mero engano a ser superado. Outros, mais condescendentes, até aceitam o direito da religião influenciar na vida privada de cada um (aquilo que “se faz entre quatro paredes”, sem necessidade de prestar contas aos demais), porém nunca na vida pública.
Os tempos atuais vieram mostrar o quanto essa postura laicista é ilusória e prepotente. Movimentos de caráter religioso são cada vez mais presentes tanto na vida política das nações quanto nas relações internacionais. O ser humano tem necessidade de um sentido para a vida, de um grande amor capaz de acolhê-lo em suas dores e em suas alegrias – e essa experiência é essencialmente religiosa. A mentalidade laicista não conseguiu eliminar as religiões do convívio social, mas teve um efeito exatamente contrário: gerou uma confessionalidade cada vez mais ressentida e aguerrida, que tem dificuldade em dialogar com os proponentes de um progressismo que parece desprezá-la e não reconhecer os seus valores.
A religião partidarizada
As grandes correntes ideológicas rapidamente se apoderaram desse conflito. A direita se apresentou como defensora dos valores religiosos tradicionais, enquanto a esquerda se afirmou do lado do laicismo ou – pelo menos – de uma religiosidade mais laicizada, menos determinante na vida social. Com isso, o segundo turno das eleições de 2022 para presidente algumas vezes parece uma guerra religiosa, onde institutos de pesquisa e analistas políticos tentam entender e descrever um “Brasil profundo”, que lhes parece tão misterioso e desconhecido como as fossas marinhas abissais, ainda que esteja à vista o tempo todo.
O passado não volta, como querem supor alguns, mas a história política, nas democracias, oscila: os grupos políticos se desgastam no poder, tendendo a ser substituídos por grupos antagônicos, que também irão se desgastar e ser substituídos pelo anterior ou algum outro semelhante. De oscilação em oscilação, o mundo vai mudando inexoravelmente, mesmo que de forma mais lenta do que imaginávamos ou indo por um caminho que não era projetado por ninguém.
Os excessos do laicismo, ao invés de enfraquecer, evidenciam a veracidade dos valores religiosos. Já a prepotência religiosa fortalece as demandas laicistas e obscurece a própria transmissão da fé. Novos modos de se relacionar com a Verdade, novas explicações e condutas que explicitam os valores que vêm da religião são inevitáveis – mesmo que a Verdade e os valores mais profundos e caros à natureza humana sejam perenes. Nosso problema é como defender esses princípios, adaptando-os aos novos contextos? Como não transformar a defesa da fé num embate político-ideológico, onde seremos fatalmente carregados pelas ideologias e nos tornaremos, com a melhor das intenções, adoradores de bezerros de ouro?
O testemunho, não o poder
Ao longo dos séculos, o povo cristão aprendeu que a transmissão de uma fé que realmente ilumina e orienta toda vida, que torna o ser humano mais feliz e realizado, não acontece por imposição. As pessoas podem até se curvar às normas ditadas pelo poder, mas o protesto e a ânsia por autonomia permanecem em seus corações, esperando apenas uma ocasião adequada para se manifestar. Em sociedades tradicionais, muito uniformes, a revolta contra o pensamento hegemônico pode não se manifestar, mas em sociedades naturalmente plurais como a nossa, toda hegemonia tende a ser questionada. Um laicismo hegemônico é questionado por aqueles que percebem a força da religião e de seus valores. Uma religiosidade hegemônica será questionada por aqueles muitos que não perceberão mais como os valores que vêm da fé os ajudarão a serem mais felizes.
Numa democracia, permanecem os valores que se consolidam por convencimento e não por imposição. Quem tenta nos impor alguma coisa, está selando sua própria queda a médio e longo prazo. Mas nós também estamos condenando o futuro de nossas crenças se imaginamos que podemos impô-las ou impor seu respeito aos demais. O cristianismo, como toda religião sincera, convence pelo fascínio provocado por uma vida transformada pelo encontro com Cristo, não por argumentos racionais ou normas morais.
Na verdade, condenamos o cristianismo justamente quando imaginamos que o poder político pode salvá-lo ou mesmo eliminá-lo – e o fortalecemos quando o propomos e defendemos a partir de um testemunho de amor e de beleza nascido da nossa experiência pessoal.
Tanto Bento XVI quanto Francisco fizeram questão de afirmar que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, DCE 1). O primeiro e maior valor do cristianismo não é uma ideia santa ou um comportamento virtuoso, mas a própria convivência com a pessoa de Cristo. Tudo o mais vem em acréscimo. O testemunho desse encontro é a verdadeira defesa da fé numa sociedade laicista.