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Por que a regulamentação da mídia pode se tornar uma arma de guerra – Parte 1

Ditadura e regulamentação da mídia

Artist Photographer 3D | Shutterstock

Francisco Vêneto - publicado em 26/10/22

A história tem fartos registros de que é suicida plantar os alicerces de um Ministério da Verdade

A regulação e a regulamentação da mídia são instrumentos neutros, e, como facas de dois gumes, cortarão o que forem manejadas para cortar.

Por isso mesmo, a depender de quem as maneja, a comparação com uma arma branca pode ficar muito aquém da realidade: esses instrumentos já chegaram a ser transformados em devastadoras armas de guerra.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), de fato, não foi apenas o maior de todos os conflitos bélicos graças ao poder destruidor de armamentos até então inéditos na história da humanidade, mas também foi a primeira grande guerra de (des)informação estratégica e sistemática em larga escala, com o respaldo de leis de comunicação social impostas por regimes autoritários desde antes do conflito deflagrado.

É argumentável, mas também contestável, que não se tratasse de legítima regulação e regulamentação da mídia – e disso falaremos adiante. Por agora, continuemos em guerra.

O rádio e a guerra

Nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial, um aparelho inofensivo começou a ser transformado eficazmente em um dos mais poderosos armamentos a favor de regimes autoritários. A massificação do rádio foi fundamental para que governos tirânicos criassem o ambiente de controle de que precisavam para implantar e consolidar o seu poder sobre a própria população, despejando diuturnamente a sua ideologia na rotina dos cidadãos e minando implacavelmente quaisquer oposições mediante o seu silenciamento e criminalização.

A visão de mundo desses regimes era imposta à população sem quaisquer filtros nem intermediários: os governos tinham entendido, com maquiavélica perspicácia, que controlar a mídia significava controlar a mente e até o coração dos cidadãos – se não de todos, ao menos de uma parcela suficientemente grande para coibir o resto de tentar uma reação.

Entre os casos mais clássicos de sujeição da opinião pública mediante o controle da mídia está o do nazismo alemão, cujo ministro da propaganda, Joseph Goebbels, identificou no rádio um meio de excelência para moldar as massas com as ideias racistas, eugenistas e supremacistas do regime de Adolf Hitler.

Goebbels determinou a massiva fabricação do aparelho de rádio VE301 e coordenou uma extensa campanha para torná-lo acessível, a fim de atingir, através das suas ondas, o máximo possível de casas e consciências alemãs. De fato, em 1939, ano em que Hitler invadiu a Polônia e fez eclodir a Segunda Guerra Mundial, cerca de 90% das residências da Alemanha tinham pelo menos um aparelho de rádio e em torno de 70% dos alemães ouviam programas de rádio regularmente. A doutrinação nazista era metralhada ao longo das 24 horas do dia, num meio de comunicação decididamente dominado pelo regime.

Era o regime que definia o que era verdade, o que era mentira, o que podia ser transmitido e o que não podia, coibindo energicamente quaisquer discursos contrários ao dogma nazista. O próprio Goebbels cunhou a diretriz que se tornaria um clichê na boca dos que atacam a desinformação alheia em defesa da própria: “Uma mentira dita mil vezes se transforma em verdade”.

A situação não era diferente na Itália de Mussolini nem no Japão imperial – nações que, para surpresa de ninguém, se aliaram à Alemanha nazista na mesma guerra contra a verdade.

Da União Soviética à Rússia e à China

Mas o cenário também era idêntico na União Soviética de Joseph Stalin, violentíssimo opressor de qualquer liberdade de expressão e brutal extirpador de qualquer oposição. E o colapso do comunismo soviético não sepultou esse afã de controle. Embora a Rússia beligerante de Vladimir Putin pareça menos terrível que os gulags de cujas ruínas é a principal herdeira, ainda assim é indisfarçável o temor que as políticas de controle da informação provocam na população russa em pleno 2022. O grau de interferência do governo russo na mídia no país, bem conhecido havia décadas, tornou-se surreal em 4 de março deste ano, quando o regime determinou que a sua guerra na Ucrânia não é uma guerra na Ucrânia e que todos os que se atreverem a chamá-la de outra coisa que não de “operação militar especial” vão se ver com a plenitude da democracia em forma de 15 anos de cadeia.

Co-herdeira da União Soviética no culto fanático ao Partido Único, a China acumula uma das mais sangrentas histórias de controle da informação já vistas em todos os tempos. Num país de milhões de analfabetos famintos, o monopólio da informação exigiu extremos como a Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Tsé-Tung, nada menos que uma década (1966-1976) de extensa lavagem cerebral e purgação radical de opositores, que destruiu a economia e a cultura tradiconal chinesa e trouxe como resultado um número estimado de mortos que varia de centenas de milhares a estarrecedores 20 milhões.

A década de horror dedicada ao controle total das mentes numa China ainda miserável incluiu massacres e perseguições tão chocantes que, no final de 1978, o novo líder supremo, Deng Xiaoping, lançou o programa Boluan Fanzheng para “corrigir os erros da Revolução Cultural”. Em 1981, o próprio Partido Comunista Chinês teve de reconhecer oficialmente que a Revolução Cultural tinha sido o “retrocesso mais severo” desde a fundação da China comunista em 1949.

O rígido controle chinês da informação, porém, apenas mudou de formatos e prossegue até a data, com onipresente e opressiva propaganda pró-Partido e devastadora perseguição de opositores. O panorama, aliás, piorou sob o comando do atual presidente Xi Jinping, que tem usado a tecnologia para transformar o país, literalmente, no “Big Brother” previsto por George Orwell no clássico “1984” (confira neste artigo). Os tentáculos do controle da mídia pelo Partido Comunista Chinês já sufocam inclusive Hong Kong, apesar do seu teórico status de autonomia e relativa liberdade.

Ditaduras de todos os espectros ideológicos

Nos pós-guerra, o discurso do combate à desinformação continuou sendo alardeado pelas ditaduras mundo afora – na sua grande maioria, ditaduras comunistas, mas também no franquismo da Espanha e em regimes militares direitistas como os do Chile, da Argentina e do Brasil, onde o selo da censura federal abundou nas mídias impressas, radiofônicas e televisivas, além da música, do teatro, do cinema e do material didático.

Têm sido as ideologias de esquerda, porém, quase pandemicamente, as mais teimosas em continuar inoculando na atualidade o vírus do controle da informação por entre rótulos de combate à desinformação e sob a máscara da “democratização” da informação.

Cuba, Venezuela e Nicarágua

Em Cuba, referência suprema de ditadura latino-americana, o rígido controle da informação foi imposto desde o início de La Revolución, com ferrenha censura de todos os meios de comunicação para garantir que eles incutissem nas mentes e nos corações as palavras de ordem do comunismo, “hasta la victoria siempre”. Um dos resultados menos catastróficos e mais folclóricos deste sufocamento da informação e deste despejamento obsessivo de doutrinação foram os discursos intermináveis de Fidel Castro, que se tornaram tragicomédia internacional. Mas mesmo isto é indicativo: quantas críticas a qualquer desses discursos, ainda que fosse apenas às suas histriônicas horas de duração, foram publicadas em algum jornal cubano?

Na pouco distante Venezuela, eis outra população engabelada pelo discurso de combater a desinformação e as alegadas mentiras de opositores, externos ou internos, reais ou fictícios. Só em 2017, já com o regime bolivariano em mãos de Nicolás Maduro, a ditadura de Caracas fechou 69 veículos de mídia: 46 rádios, 3 emissoras de TV e 20 jornais impressos. Pelo menos 300 jornalistas venezuelanos foram presos ou impedidos de exercer a atividade jornalística no país. Tudo, registradamente, em nome da luta contra as “fake news”, ainda nos primórdios desse famigerado estrangeirismo que virou um chavão obsessivo e onipresente nas guerras de narrativas dos últimos anos.

Um dos mais recentes sepultamentos da democracia sob o túmulo da suposta “regulação” ou “regulamentação da mídia” aconteceu na Nicarágua, cujo ditador, Daniel Ortega, repete ad nauseam as palavras mágicas “fake news” para rotular qualquer notícia que o seu necrotério afirme ser falsa. A elástica manipulação da regulação nicaraguense da mídia é usada para calar a boca de autores e também dos veículos que lhes dão voz, seja com multa, seja com prisão, seja com a cassação dos direitos de transmissão ou publicação. A alegada aplicação das regulações da mídia no regime de Ortega não poupou sequer uma rede de viés esquerdista como a CNN – não assombra, então, que tenha varrido rádios católicas como as seis que mandou fechar de uma única vassourada só na diocese de Matagalpa, em paralelo à onda de perseguição contra padres e freiras que foram sitiados, presos ou expulsos arbitrariamente do país por se atreverem a questionar a sua “democracia”.

Na Venezuela e na Nicarágua, o controle ditatorial da informação pelo regime foi implementado, ostensivamente, sob a máscara da “democratização da mídia”, valendo-se, já no processo de cancelamento de objetores, da manipulação de termos técnicos elegantes, como os profusamente repetidos “regulação” e “regulamentação”.

Por isso mesmo, antes de seguir em frente, é necessário esclarecer o que significa regulação e o que significa regulamentação, que não são a mesma coisa.

Continua na PARTE 2:

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