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Por que a regulamentação da mídia pode se tornar uma arma de guerra – Parte 2

Ditadura, regulamentação da mídia e censura

Jorm S | Shutterstock

Francisco Vêneto - publicado em 26/10/22

É a dose errada do remédio o que o transforma em veneno

Esta é a Parte 2 do artigo “Por que a regulamentação da mídia pode se tornar uma arma de guerra“. Se você ainda não leu a Parte 1, acesse-a aqui:

Regulação e regulamentação da mídia

Na Venezuela e na Nicarágua, o controle ditatorial da informação pelo regime foi implementado, ostensivamente, sob a máscara da “democratização da mídia”, valendo-se, já no processo de cancelamento de objetores, da manipulação de termos técnicos elegantes, como os profusamente repetidos “regulação” e “regulamentação”.

Por isso mesmo, antes de seguir em frente, é necessário esclarecer o que significa regulação e o que significa regulamentação, que não são a mesma coisa.

Regulação é uma atividade atribuída a um órgão ou agência governamental que tem poder especial para legislar sobre como um setor de interesse público deve operar. No Brasil, este é o caso, entre outras, da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia que regula e fiscaliza o setor elétrico brasileiro, ou da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), que regula e fiscaliza as atividades da aviação civil e a infraestrutura aeronáutica e aeroportuária no país.

(Que as agências funcionem adequadamente a favor do cidadão já é outra questão que também precisa ser discutida: o simples fato de que um órgão regulador exista não quer dizer que funcione como promete).

Já a regulamentação é uma atividade de competência do Chefe do Poder Executivo: grosso modo, consiste em detalhar e suprir eventuais lacunas de uma regulação que já existe, a fim de esclarecer como essas leis devem ser aplicadas e como o seu fiel cumprimento deve ser garantido.

Vamos aos exemplos.

No caso da mídia como um todo, a Constituição Federal do Brasil prevê, no artigo 220, § 5, que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. No entanto, não existe até hoje nenhuma regulamentação do Poder Executivo que determine o que são o monopólio e o oligopólio nas comunicações sociais do país. Existe uma regulação, mas não existe a sua regulamentação.

De modo semelhante, existe no país um bagunçado arcabouço de leis que regulam assuntos ligados à mídia. É assim desde o Império, quando surgiram os primeiros decretos que regulavam a imprensa. Na década de 1930 vieram as regulações da radiodifusão. Na década de 1960, entrou em vigor o Código Brasileiro de Telecomunicações, que, diga-se de passagem, continua vigente até hoje, anacronismos inclusos. Ao longo das décadas, dezenas de leis continuaram surgindo para regular a comunicação de forma esparsa e desconectada, como a lei do cabo, a das rádios comunitárias, a que disciplina a participação de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de radiodifusão, a que criou a Empresa Brasil de Comunicação… Há leis também para regular conteúdo, como a que define punição diferenciada para os crimes resultantes de preconceitos de raça ou cor veiculados na mídia, ou a lei de tela, que determina cotas para produções nacionais no audiovisual. Há também a regulação da publicidade, que, por exemplo, proíbe a publicidade infantil.

Mas não há no país uma lei geral das comunicações eletrônicas e de massa, que, na visão dos seus defensores, regulamentaria, como mínimo, os artigos da Constituição Federal (como o já citado 220), além das regras aplicáveis a veículos mais recentes, como a internet.

No caso da internet, se falarmos em regulamentação, estaremos falando de como o Poder Executivo deve detalhar leis já existentes, como o Marco Civil da Internet, em particular no tocante à neutralidade de rede, à privacidade na rede e à guarda de dados – considerando-se, ainda, que, sobre o último ponto, já contamos também com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Quanta regulação e quanta regulamentação?

Como se observa, regulação e regulamentação são instrumentos neutros. É o seu uso o que determina se eles serão ou não transformados em armas de guerra.

Por um lado, regras claras, que valham independentemente do governo de turno, são necessárias até para impedir que esse governo se torne perpetrador ou cúmplice de abusos de censura e desinformação. Por outro, um engessamento de regras, sobretudo quando se arrogam poderes altamente subjetivos de análise da “verdade”, são praticamente a sacramentação do enviesamento ideológico.

Há cenários em que as regras já existentes são suficientes, como as que, preservando a liberdade de imprensa, de opinião e de expressão, também protegem contra a injúria, a calúnia e a difamação. Há outros, como o da já citada ausência de regulamentação sobre o que é um monopólio ou oligopólio de mídia, que requerem ao menos “algum” grau de detalhamento.

O problema está em definir que grau é esse: afinal, a dose errada do remédio é o que o transforma em veneno.

De quanta regulação e de quanta regulamentação precisamos objetivamente, para além das leis, garantias, vetos e obrigações que já temos? O desafio é definir o ponto de equilíbrio entre os extremos de nenhuma e da imposição de um pensamento único, passando por distintos graus de censura (inclusive quando em alegado caráter “excepcionalíssimo”).

Este desafio é global. O Twitter pode banir para sempre um presidente dos Estados Unidos? Se sim, com base em que regulação ou regulamentação? Qual é o grau aceitável de poder de policiamento, censura, julgamento e condenação que uma “big tech” pode exercer sobre as opiniões e sobre quem as emitiu? Em que contextos o YouTube pode legitimamente censurar um vídeo ou um canal inteiro por questionar o que outros dogmatizam que é “ciência” inquestionável, muito embora a ciência não seja dogma e o seu método pressuponha necessariamente o questionamento? Quem define a verdade, seja para Pôncio Pilatos, seja para dona Zefinha? Quando se pode vetar um documentário que nem sequer foi lançado, se é que se pode? E, entre tantas outras, a pergunta subvalorizada que, no fim das contas, ainda ninguém respondeu: quem checa os checadores?

Se é preciso haver “alguma” regulamentação e o desafio é definir quanta, a resposta mais democrática deve ser a que mais garanta espaço às liberdades e menos tolere a sua restrição: portanto, “alguma” regulamentação significa a mínima regulamentação possível.

“Fake news” não se combatem com cerceamento e censura, mas com ampla liberdade de imprensa, de opinião e de expressão para contestar e refutar, com argumentos e comprovações, com réplica e tréplica, e não com tarjas, canetaços e medidas “excepcionalíssimas”. E se as afirmações mentirosas ainda forem agravadas pelo crime de calúnia, difamação ou congêneres, nem assim a censura será o remédio: a lei prevê os devidos processos para que os responsáveis sejam denunciados, julgados e sentenciados, e é isto o que deve ser aprimorado num legítimo estado democrático de direito.

Um Ministério da Verdade sempre terá um Goebbels como ministro

A história tem fartos registros de que é suicida plantar os alicerces de um Ministério da Verdade, seja qual for o seu nome, porque o seu ministro será sempre um Joseph Goebbels.

Nenhuma alegação de combate à desinformação pode se arrogar o inexistente direito de vedar o livre debate sobre a verdade e a mentira, a menos que se queira reposicionar um país na seleta companhia de Bielorússia, Turcomenistão, Coreia do Norte, Afeganistão, Irã e, entre outros primores da democracia, as já mencionadas China, Rússia, Venezuela, Nicarágua e Cuba.

A regulação e a regulamentação da mídia são instrumentos neutros, e, como facas de dois gumes, cortarão o que forem manejadas para cortar.

E tanto é verdade que, se alguém tiver uma opinião diferente desta, esse mesmo alguém quererá o direito de proclamá-la e defendê-la sem pressões nem cerceamentos – basta que assuma as consequências da própria liberdade e cobre as do próximo quando discordar do que ele diz.

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