A exposição “O Cântico dos Cânticos: exercícios para a apreensão de um poema”, da artista plástica Lucila Sartori, está em cartaz na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da Universidade de São Paulo (USP).
Sob uma iluminação aconchegante que estimula a observação das obras, a mostra é composta por gravuras em mental estampadas em papel e álbuns com desenhos e colagens. Artes que foram desenvolvidas por Lucila ao longo de anos de trabalho e de estudo do livro do Antigo Testamento, Cântico dos Cânticos. Peças de cerâmica, feitas exclusivas para a ocasião, completam a mostra.
Do estudo à inspiração
Há muitos anos, Lucila estuda o livro Cântico dos Cânticos, constituído por poemas amorosos, organizado ao redor dos anos 400-300 a.C.
Ao todo são 117 versos em oito capítulos. Este livro sapiencial aborda o amor humano, mas também celebra o amor e a ternura divina pela humanidade – esta seria como que a noiva de Deus, em um interpretação espiritual e alegórica, por exemplo.
“É um texto muito lindo. Fala do amor, da união e das vicissitudes (adversidades) do amor. Desse caminho, dessa experiência amorosa”, comentou a artista ao jornal "O São Paulo", destacando que estudou interpretações de diferentes autores sobre o texto, desde a feita por religiosos e santos até por estudiosos mais contemporâneos em uma perspectiva mais antropológica.
Lucila se interessa pelos mistérios que cercam o livro bíblico: "Desde os místicos que são apaixonados pelo Cântico até filósofos, linguistas, músicos e botânicos que estudaram as espécies e conseguiram por meio disso chegar a uma datação [do livro] e a um espaço físico onde o Cântico aconteceu”, afirmou
A artista revelou que a inspiração para produzir os trabalhos artísticos se deu após as leituras dos poemas deste livro bíblico: “Ao ler, tive vontade de colocar essas imagens na técnica de gravura em metal”, contou Lucila, que desenvolveu ainda imagens em trabalhos de desenho e colagem.
Um texto atual
Lucila enfatiza que o livro dos Cânticos também trata de questões atuais, como o respeito que deve haver na relação de um casal: “Os personagens principais, o casal, falam amorosamente no mesmo plano, não há subjugação de um ser pelo outro. Há um respeito muito bonito. É uma celebração de um pelo outro”.
Outro tema identificado por Lucila e que permeia sua inspiração é a natureza, em que “o humano além de estar nela, vive em respeito a ela”.
Lucila percebe o mundo do Cântico como um cosmo que aparece pelas alusões de elementos como o sol e a lua, englobando um mundo geológico.
“Essa geografia é habitada por vegetações específicas que são nomeadas no poema, com espécies aromáticas e flores que abrigam por sua vez uma série de animais”, detalhou Lucila. “No centro disso está o casal humano, que é o lugar da palavra e que entre os dois constitui o poema.”
“Penso ser importante que esses temas existam há tantos séculos e até hoje isso ainda não foi resolvido, haja vistos as violações que a gente assiste da natureza e mesmo dos relacionamentos entre as pessoas”, completou a artista.
Ambientação
As gravuras e os álbuns estão acomodados em vitrines laterais do espaço expositivo. Já as cerâmicas estão no centro da sala, onde a iluminação do ambiente também se concentra.
Além de preencher fisicamente o lugar, as peças de cerâmica exalam sutil perfume. O cheiro faz parte da mostra. Com o reforço de pequenos difusores espalhados pela sala, o perfume é conservado no ambiente.
“O trabalho [de cerâmica] é uma instalação pensada como um jardim fechado, um dos assuntos do Cântico dos Cânticos”, pontuou Lucila.
“Ao pensar no livro dos Cânticos, a primeira imagem que me veio foi a de um lugar, o deserto que, provavelmente, foi o local originário em que esse livro foi escrito ou ditado”, contou à reportagem o curador da exposição, Luiz Armando Bagolin.
Partindo dessa ideia, a artista e o curador buscaram uma forma de trabalhar na mostra a aridez do deserto, mas também, um lugar em que existe vida.
“Existem flores no deserto, resistentes e perfumadas. Por isso, a ideia do jardim e dos aromas, da sala mais escura, das gravuras e desenhos nas vitrines e o restante do espaço vazio”, acrescentou Bagolin.
Curadoria
Lucila pondera que embora a exposição tenha o livro do Cântico dos cânticos como inspiração, não se buscou representar seu conteúdo: “É um recorte do meu trabalho. Não é uma ilustração do Cântico. É uma ressonância dos meus estudos e das minhas leituras tanto do livro dos Cânticos quanto das camadas interpretativas que essa obra teve ao longo da história”.
Lucila confia que a mostra pode ser uma porta de entrada de apreciação do Livro dos Cânticos: “Ao olhar [a exposição] e se interessar, a pessoa pode querer conhecer a origem do trabalho. Acho que é uma boa contribuição”.
O curador, Bagolin, acredita que o trabalho de Lucila sirvirá de estímulo para o visitante buscar uma tradução do livro do Cântico dos Cânticos e ler, senão inteiro, trechos dele.
Isabel Azevedo, 66, também artista plástica, esteve na abertura da mostra e pretende voltar, pois para ela, não é uma exposição para ser prestigiada uma única vez.
“Você precisa conectar com calma o texto com a imagem e, assim, consiga juntar as duas coisas, enquanto está observando. Olhar uma sequência de imagens rapidamente é diferente de se concentrar em cada uma”, comentou Isabel.
Serviço
Gratuita, a visitação de “Cântico dos Cânticos: exercícios para a apreensão de um poema” vai até 31 de março, de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos sábados, das 9h às 13h.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
Rua da Biblioteca, 21, Cidade Universitária, São Paulo/SP
(Apuração: Ira Romão, jornalista)