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Os sofrimentos de Cristo e os nossos

Decoracao de Quaresma com vela, coroa de espinho e pedras

Thoom | Shutterstock

Dom Orani João Tempesta - publicado em 03/03/23

Deus não quer o sofrimento, mas, dadas as limitações das criaturas, o padecimento existe e o Senhor o permite. Entenda:

Nesta primeira semana da Quaresma, gostaria de refletir sobre o início da Paixão do Senhor com a sua angústia ante a morte que se avizinhava (cf. Mc 14,33-34). Dá a ver que o cristão, mesmo nos piores sofrimentos, jamais deixa de rezar e se entregar, de todo coração, a Deus.

Valho-me da obra “Meditações sobre a Paixão do Senhor”, de São Charles de Foucauld (Paulus, 2016, p. 17-18), canonizado, em 15 de maio de 2022, em Roma, pelo Papa Francisco. Suas reflexões, a partir do próprio texto do Evangelho, se revestem de um aspecto vivo e prático para cada um de nós. Acompanhemos!

Diante da passagem “Levou consigo Pedro, Tiago e João; e começou a ter pavor e a angustiar-se. Disse-lhes: ‘A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai’ (Mc 14,33-34), o santo se põe a refletir sobre o sofrimento. De um modo muito particular, medita sobre a principal dor do Senhor naquele momento e que há de ser também a nossa: a da perda de tantos seres humanos que, de modo totalmente livre, rejeitam o seu salutar plano de amor para conosco. 

Escreve Foulcauld: “(…) Vós nos ensinais a escolher o sofrimento, amar o sofrimento para vos imitar quando sofremos no interior de nossa alma. Sofrer de quê? De vermos a perda eterna de tantos homens, membros vossos, e de sermos incapazes de impedi-lo. Foi este, sem dúvida, o vosso sofrimento mais amargo… Sofrer por todos os pecados do mundo que ofendem a Deus e mancham as almas, pelas dores pessoais de nossos corações, pelas traições de nossos amigos, dos excessivos sofrimentos corporais. Essas coisas, enquanto vivermos neste mundo, é inevitável que façam o nosso coração sofrer, a não ser que sobrevenha um milagre espiritual” (p. 17). 

É interessante notar que todos aqueles sofrimentos do Deus feito homem por amor de nós, são as dores de cada um. Tais dores não constituem demérito algum. Ao contrário, são inerentes à natureza das criaturas feridas pelo pecado, mas, se vividas em união com Deus, tornam-se providenciais, pois se revestem do caráter de ascese (= exercício) passiva, ou seja, de suportar um sofrimento não desejado, porém abraçado na íntima união com o Senhor. 

Por isso, segue o santo eremita do Saara a refletir: “Sofrer pela traição de nossos amigos, pela morte de nossos parentes, pela violência de nossas excessivas dores corporais, nada disso é imperfeição, de modo absoluto. O que é necessário, involuntário, não pode constituir imperfeição. Essa opressão do coração, esse sofrimento interior é necessário, natural no homem, enquanto passível, isto é, enquanto a alma está unida a este corpo mortal, e isso por vontade de Deus. Não está em nosso poder o não sofrer por essas coisas, e não devemos nem sequer procurar sabê-lo, porque buscar essa impassibilidade, um dia sonhada pelos estoicos, equivaleria a procurar uma fuga diante da ordem estabelecida por Deus. Somente Deus pode colocar-nos em tal impassibilidade neste mundo, com algum milagre espiritual. Nós, porém, não devemos nem desejar nem pedir esse milagre, porque não seria mérito para nós, a partir do fato de que Deus não o fez para Jesus… Nós devemos seguir o exemplo de Jesus, e mesmo sofrendo com isso, e sofrendo alguma vez até à morte uma dor que é agradável à vontade de Deus para ele se unir com a nossa natureza, devemos conformar plenamente, e com perfeição, a nossa vontade com a dele, e nunca deixar de lhe dizer, no mais profundo do coração: ‘Faça-se a vossa vontade, e não a minha’” (p. 17-18).

Certo é que Deus não quer o sofrimento, mas, dadas as limitações das criaturas, o padecimento existe e o Senhor o permite. Todavia, importa recordar, com o grande Santo Agostinho de Hipona, falecido em 430, que o próprio Deus não permitiria esse mal se dele não pudesse tirar bens ainda maiores (cf.Enchridion, XXVIII). Que bens são estes? – São tantos que, às vezes, sequer podemos imaginar. Sim, o nosso sofrimento natural (todos sofremos!), se unido ao de Cristo (nem todos se unem a Ele!), torna-se sobrenaturalizado, pois a graça divina nos capacita a oferecer as nossas dores e angústias ao Pai em união com Cristo. Tais sofrimentos – em si mesmos, naturais – passam – e aqui entra o sobrenatural – a ser corredentores, pois dão uma moldura nova à Paixão de Cristo nos nossos dias. Por isso, São Paulo pôde exclamar: “Completo em minha carne o que falta à Paixão de Cristo” (Cl 1,24).

Como entender essa fala do Apóstolo? – É Dom Estêvão Bettencourt, OSB, quem nos ajuda com sua oportuna exegese do referido texto. Sim, diz o sábio monge: “compreende-se que, se no plano do merecimento nada falta à Paixão de Cristo (seu valor é infinito), no plano da aplicação ou do desdobramento, algo lhe falta naturalmente, algo que depende estritamente do fator ‘tempo’, algo que somente com a existência sucessiva das gerações cristãs lhe pode advir”.

“Em outros termos: a Paixão de Cristo logrou imediatamente a plenitude de seus frutos apenas na santíssima humanidade de Cristo; somente esta ressuscitou como nova criatura (cf. 2Cor 5,17), isenta de todas as consequências do pecado. Depois disto, é preciso, por desígnio de Deus, que os cristãos, um por um, percorram o mesmo caminho trilhado pelo Senhor, isto é, padeçam em união com Cristo uma parcela da Paixão redentora, assimilando-a a si, a fim de conseguir os efeitos desta no dia da ressurreição dos corpos. Enquanto, pois, houver cristãos neste mundo a trilhar tal caminho, ou seja, até o fim dos séculos, poder-se-á dizer que a Paixão de Cristo se vai estendendo ou desdobrando; ela vai tomando novos e novos suportes; vai adquirindo vulto ou configuração própria em novos sujeitos. Destarte São Paulo afirma que, quando um cristão sofre em espírito cristão, isto é, como membro vivo do Corpo Místico, já não é um simples filho de Adão que padece em castigo do pecado, mas é o Cristo que nele sofre para estender a ele a obra da Redenção”.

E continua o monge: “Na base dessas ideias, Pascal († 1662) bem podia escrever: ‘Jésus sera en agonie jusqu’à la fin du monde. – Jesus estará em agonia até o fim do mundo’. Para tornar esta afirmação ainda mais clara, tenham-se em vista os dizeres de São Paulo aos Gálatas: ‘Estou crucificado com Cristo. E, se vivo, não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gl 2,19-20). Esta frase se poderia também assim construir: ‘… E, se padeço, não sou mais eu que padeço, é Cristo que padece em mim; é Cristo que prolonga sua paixão em mim, dando-lhe novo suporte, nova configuração concreta’”.

“E, da mesma forma que São Paulo, todo cristão que viva na graça santificante, pode asseverar que é Cristo quem nele vive e padece, não somente nas horas solenes e extraordinárias, mas também nos momentos mais simples da vida cotidiana. Santo Agostinho, consciente dessa realidade, falava da ‘Paixão total de Cristo, que sofreu enquanto é nossa cabeça, e que continua a sofrer em seus membros, isto é, em nós’ (In Ps LXI Migne 36, 731)”.

Possam estas reflexões ser de grande ajuda a cada um de nós cada dia da nossa vida, mas, de modo muito especial, neste tempo quaresmal. Tempo em que somos, com um olhar todo singular, chamados a meditar sobre o amor de Deus por você e por mim. Amor que deu o seu próprio Filho para morrer por nós quando ainda éramos pecadores (cf. Rm 5,8).

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