A tragédia que se abateu sobre o Litoral Norte de São Paulo, neste carnaval, com mais de 60 mortes e 4 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas, não foi um acidente isolado, fruto do verdadeiro dilúvio que caiu sobre a região. Foram, de fato, as maiores chuvas já registradas por postos meteorológicos no Brasil – mas todos sabem que aquela área está sujeita a essas chuvas e que a ocupação territorial desordenada só aumentou o problema.
Estradas construídas nas vertentes dos morros, com vista para o mar, são belíssimas, mas sempre perigosas. A urbanização do relevo montanhoso exige das municipalidades planos diretores rígidos e fiscalização constante, para evitar a ocupação desordenada das encostas e dos enclaves de planície costeira, onde as praias podem ser maravilhosas, mas não permitem o estabelecimento de muitas casas. Isso não quer dizer que o turismo não pode ser praticado ou deve ser elitizado, reservado apenas para uns poucos mais ricos. Ele deve existir, mas bem orientado.
Os loteamentos turísticos fatalmente focam em populações de classe média ou alta. Estão sujeitos a padrões de segurança, beleza cênica, limpeza, privacidade, etc... Ideal seria que tais padrões fossem para toda a população. Se isso não é possível, nem tudo pode ser permitido a eles, sem um olhar para o bem comum e as necessidades dos demais. Os planos diretores devem considerar os impactos que trarão sobre o desenvolvimento urbano, as necessidades dos trabalhadores que virão até lá e tenderão a ocupar as áreas em torno.
O triunfo da insensatez
Ao longo da Rio-Santos, tudo foi feito de modo diverso. A estrada é uma grande rota de circulação regional, passando no meio de bairros residenciais, atravessada por banhistas a caminho do mar, sofrendo frequentes desbarrancamentos e interdições. Os condomínios de casas de veraneio ocupam indistintamente praias extensas e pequenas enseadas. A população pobre foi deslocada para as encostas dos morros e vales dos rios costeiros. Hoje, a ocupação das áreas de risco e a carência habitacional são um dos grandes desafios regionais.
Curiosamente, o Litoral Norte de São Paulo é um polo de atração para veranistas preocupados com o meio ambiente, dispostos a fazer viagens maiores para encontrar praias mais limpas e ter maior contato com a natureza. Contudo, a dimensão social da ocupação do território frequentemente não é percebida. Enquanto os condomínios de veraneio têm cenários paradisíacos, a população pobre se espreme em áreas de risco.
Outro aspecto desconcertante da região é que os municípios são ricos. Além da renda auferida com o turismo, recebem royalties da exploração e distribuição do petróleo. Contudo, os investimentos municipais focam na atração aos turistas e nos condomínios mais ricos.
O que pode e deve ser feito
Ainda que os problemas venham de longe, medidas mitigadoras podem ser adotadas, enquanto se caminha para uma solução definitiva do problema – que só será possível com a desocupação e recuperação ambiental de todas as áreas de risco. Esta solução “definitiva” passa pela construção de moradias populares de qualidade, em quantidade suficiente para toda a população necessitada – além de uma fiscalização rigorosa para evitar novas ocupações de áreas de risco e de proteção ambiental. Enquanto isso, é necessário implementar com urgência planos de contingência eficientes e bem estruturados para minimizar ao menos as perdas de vidas
Mas seria possível resolver o problema em todo o Brasil? Tomemos esses dois números: são cerca de 8 milhões de brasileiros vivendo em áreas de risco, segundo estimativas do IBGE. O Programa “Minha casa, minha vida”, do governo federal, entregou entre 2009 e 2019 cerca de 5 milhões de imóveis, atendendo a mais de 10 milhões de pessoas. Evidentemente, esses recursos não poderiam ser alocados apenas a populações que habitam áreas de risco, mas os números mostram que a meta de erradicar a ocupação dessas regiões é factível a médio e longo prazo – e até a curto prazo se pensarmos num esforço concentrado onde os riscos são maiores.
Os destinos dos mais pobres e da natureza andam juntos
“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras (São Francisco de Assis, Cântico das Criaturas). Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7)” (LS 1-2).
As trágicas consequências da ocupação desordenada do litoral paulista bem ilustram as palavras do Papa Francisco na Laudato si’. Desastres num paraíso ecológico, destinação cruel dos pobres vitimados pela voracidade do lucro, inconsequência dos poderosos diante da obra de Deus – eis aqui uma realidade que nos deveria fazer refletir sobre nosso lugar e nossa responsabilidade no mundo.
Não fomos educados para o poder
“A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano [...] Não podemos, porém, ignorar que [...] nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer [....] Tende-se a crer que ‘toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores’ (GUARDINI, R. O fim dos tempos modernos), como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que ‘o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder’ (GUARDINI, R. Idem)” (LS 103-105).
Para o sábio, a natureza é uma parceira poderosa. Para o insensato, é uma servidora que nunca se submete tal como esperado. Cada região, cada ecossistema, assim como cada pessoa, tem suas potencialidades e suas fragilidades. Cabe ao ser humano utilizar seus recursos de modo a obter o melhor de seu potencial, cuidando e se precavendo de suas fragilidades. Quando não age assim, os recursos se esgotam rapidamente, as belezas naturais se degradam e enfeiam, os eventos climáticos e geológicos têm seus efeitos trágicos potencializados.
Os poderes da engenharia e do capital foram mal utilizados no desenvolvimento urbano do Litoral Norte paulista. Agora pagamos o amargo preço da insensatez humana. O cristianismo não dá respostas para os problemas ambientais de nosso tempo – nem se propõe a tal. Contudo, a Laudato si’ nos apresenta uma posição humana, tipicamente cristã, que nos ensina a usar o poder humano de forma sábia – e essa tragédia não teria acontecido se a sociedade brasileira tivesse sido mais sábia.