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Misericórdia: tão fácil que é difícil

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 23/04/23

Entenda por que a misericórdia é o melhor remédio para grande parte das desgraças, em nossa vida espiritual, afetiva e até material

Neste primeiro domingo depois da Páscoa, como acontece todos os anos, comemoramos na Igreja o Domingo da Misericórdia, instituído por São João Paulo II. Já escrevi sobre essa data no passado e não gostaria de me repetir. Contudo, todos os anos me espanto com a pouca atenção que a data recebe por parte de nossas comunidades. Raras vezes vejo essa festa litúrgica ser celebrada com a atenção que me parece merecer.

Muitos a criticaram (e continuam criticando) por tratar-se inicialmente de uma devoção particular do povo polonês, associada às visões místicas de Santa Faustina Kowalska. Seria uma tentativa feita pelo papa polonês de internacionalizar algo que era próprio de seu país e não da Igreja universal. Mas, qual de nós não fez a experiência de se aproximar mais da Igreja pela influência de outras pessoas, que nos atraíram com suas características pessoais, porque eram, por exemplo, muito alegres ou muito sábias, muito carinhosas ou muito entusiasmadas – Deus, que chega até nós por meio dos temperamentos e das peculiaridades de nossos irmãos, com certeza se vale do modo de ser e das devoções dos papas para falar a toda a Igreja!

Mas, depois de São João Paulo II, também Papa Francisco revelou-se particularmente tocado pela experiência da misericórdia. Proclamou, com a Bula Misericordiae Vultus, o Jubileu extraordinário da Misericórdia (8 de dezembro de 2015 a 20 de novembro de 2016), que encerrou com a Carta Apostólica Misericordia et misera. O primeiro livro de entrevistas que concedeu como papa chama-se justamente O nome de Deus é misericórdia (São Paulo: Planeta, 2016). Poderemos, novamente, alegar que se trata de uma devoção pessoal que um papa tenta impor a todos. Mas não podemos deixar de considerar que Deus deve ter alguma intenção universal ao inspirar com a mesma “devoção particular” dois papas tão diferentes – o polonês, vindo de ditadura ateia comunista, e o argentino, vindo de um continente de maioria católica, mas assolado por ditaduras de direita.

O rosto da misericórdia

Sem dúvida Deus quer que nós, em nosso tempo, descubramos (ou aprofundemos, se já descobrimos) o significado de Sua misericórdia para conosco. Transcrevo aqui alguns trechos iniciais da Misericordiae Vultus: 

“Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. […] Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado. Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes”.

Vivemos num tempo de individualismo, numa sociedade onde pessoas e coisas são descartadas quando não trazem mais o prazer esperado, onde a gratuidade das relações parece uma ilusão enganosa. Grande parte das desgraças, em nossa vida espiritual, afetiva e até material, tem origem nesse modo deturpado de julgarmos a realidade… E a misericórdia é o melhor remédio para toda essa dor. Mas somos daquele tipo de doente renitente, que se recusa a tomar o medicamento que poderá curá-lo. Queremos ser curados por nossa força moral, pela coerência das pessoas que amamos, pelos êxitos de nossos projetos – mesmo quando sabemos que nossa coerência é frágil e que nossos projetos, mesmo quando se realizam, não costumam nos entregar a satisfação pretendida.

Algo que Deus reserva, com amor especial, para os pequeninos

Ser salvo pela misericórdia é fácil. Agir com misericórdia é mais difícil um pouco, mas não tanto quanto parece – pois quem se descobre amado, aprende a amar. Basta termos a humildade de nos reconhecermos limitados, pecadores incoerentes, e pedirmos, a partir daí, a salvação que vem do amor do Pai – e que já começa, mesmo que precariamente, nessa vida. O problema é a dificuldade que temos em reconhecer nossos limites e agir com humildade, perante Deus e perante o mundo.

Talvez seja essa a razão do Domingo da Misericórdia não receber uma acolhida mais entusiástica entre nós. “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos […] Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas” (Mt 11, 25-29). Ah! Como essas palavras, que deveriam servir de alento e consolo, são difíceis para nós, que vivemos numa cultura que exalta o sucesso e o poder, que proclama, de fato, que só os vencedores poderão ser amados e respeitados (mesmo quando diz exatamente o contrário na teoria).

O insignificante e o infinito

Uma passagem da Laudato si’ (LS) me impressiona particularmente: “Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho” (LS 77). Então, até uma ameba ou um inseto, enquanto existem, estão envoltos no amor de Deus! Mas, perante, a extensão do universo e a própria eternidade, não sou eu também um ser insignificante e efêmero? Quanto amor, quanta ternura da misericórdia, um ser humano precisa experimentar para perceber esse carinho de Deus por toda a criação!

Essa frase da Laudato si’ me faz pensar em quão limitado e falível eu mesmo sou. Mas isso não me deprime ou envergonha, pois percebo que, na minha insignificância, e até mesmo a partir dela, Deus me conecta com a infinitude de seu amor. E creio que, por um breve momento, consigo intuir a grandeza da misericórdia.

Que encontremos o remédio da misericórdia sempre que necessitarmos, para nós mesmos e para nossos irmãos.

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