No dia 29 de maio de 2023, a comunidade dos monges beneditinos camaldolenses do Mosteiro da Transfiguração, juntos com as irmãs do Mosteiro da Encarnação e numerosos fieis leigos, celebraram solenemente o I Aniversário da Dedicação da nova Igreja, dedicada ao mistério da Transfiguração de Jesus.
A celebração da Dedicação havia sido presidida um ano antes, pelo bispo de Mogi das Cruzes, Dom Pedro Luiz Stringhini, com a participação do Prior Geral dos monges, Don Alessandro Barban. O projeto arquitetônico foi inspirado pela fé e a sensibilidade artística e espiritual do grande artista de arte sacra e amigo da comunidade monástica, Claudio Pastro (1948 -2016), em diálogo com os monges.
Por que tanta solenidade para celebrar a Dedicação de uma igreja? Existem tantas igrejas bem mais antigas na nossa cidade de Mogi das Cruzes, e quase nunca uma paroquia celebra a memória da Dedicação da sua igreja. É o/a Padroeiro/a, que habitualmente ocupa o lugar de relevo entre as festas da comunidade, mas sobre a Dedicação da igreja existe bem pouca atenção pastoral.
Todavia, no Missal Romano, a celebração da Dedicação de uma igreja e da sua memória anual é de primeira importância. Por que? O explica bem esta oração que se reza no dia: Ó Deus, que edificais o vosso templo eterno com pedras vivas e escolhidas, difundi na vossa Igreja o Espírito que lhe destes, para que o vosso povo cresça sempre mais, construindo a Jerusalém celeste.
Ao centro da atenção do olhar da Igreja está o mistério da construção de si mesma, no momento presente, como templo vivo de Deus, por obra do Espirito Santo, com as pedras vivas que são os fiéis. O protagonista principal da obra é o próprio Deus, e a Igreja vive esta ação divina como um processo sem fim. O edifício material e a sua dedicação ao culto divino são símbolos a serviço do processo incessante de crescimento da comunidade, como verdadeiro templo habitado pelo Espirito.
A comunidade cristã edificada em Cristo como templo vivo do Senhor
O edifício material se constrói por ação dos seres humanos, e esta construção termina; mas o edifício espiritual que é formado pela comunidade, permanece um “canteiro de obra aberto”, ao longo da história de cada um e da igreja, até o fim dos tempos, sob a ação do Espirito. A realização plena em Cristo permanece objeto e motivo de desejo e esperança da comunidade que ali vive. Como diz Papa Francisco, a igreja deverá estar sempre “em saída”. Não porque um elemento exterior qualquer a obrigue a adaptar-se às circunstâncias da história, mas pelo renascimento continuo, determinado pela participação de todos os membros daquela comunidade à eucaristia, que a impele rumo ao cumprimento escatológico e a guarda, aberta às novidades do Espirito.
É a partir desta consciência teológica e eclesial renovada, que a comunidade monástica celebrou a Dedicação da igreja em 2022, e este ano o seu I aniversário. A celebração deste evento marca mais que a alegria pela conclusão da construção do novo edifício de culto e o início oficial do seu uso.
A Dedicação ressalta e faz memória do nascimento e do desenvolvimento contínuo da comunidade, vivificada pela proclamação e pela escuta da Palavra do Senhor, e pela partilha do seu corpo e do seu sangue que nos faz partícipes da vida divina, e faz de todos nós o povo de Deus a caminho na fé, e corpo vivente de Cristo.
A igreja-edifício, é símbolo da igreja-comunidade de fé. A liturgia nos faz participar do mistério da morte e ressurreição de Jesus, ao mesmo tempo em que nos impele a viver o mistério da própria transformação no corpo vivo de Cristo, e nos chama a viver no dia a dia esse mesmo amor, até o dom da vida pelos irmãos.
A construção da igreja-edifício acabou. Iniciou-se sua função de acolher a igreja-comunidade, que ali encontra a nascente da própria vida, o alimento do próprio caminho de fé, e o penhor da sua plenitude futura, quando o Senhor nos acolherá na sua gloria.
A construção da igreja-comunidade é um canteiro sempre aberto, sob a ação e a direção do Espirito Santo, - como acabamos de dizer acima - que atua segundo o desígnio do Pai para fazer de cada um/a de nós sua habitação e seu templo vivente.
Se temos esta consciência teológica e eclesial, a participação na liturgia adquire um sentido vital na vida da comunidade e na vida pessoal. Se faltar essa compreensão, tudo se torna uma formalidade, sem consequências para a vida.
Ressoa surpreendente, para nós, a admoestação apaixonada de Santo Agostinho aos recém batizados: Tornai-vos o que sois! Na realidade, estas palavras de fogo tocam o âmago da nossa identidade e experiência cristã. Pelo batismo, a crisma e a eucaristia, inicia-se a se formar em nós, pela ação misteriosa do Espirito Santo, uma nova conformação a Cristo, e uma relação filial especial com o Pai. Podemos rezar de verdade, unidos a Cristo, Pai nosso, que estais no céu ... Mesmo que, até a vinda do Senhor na sua gloria ao fim dos tempos, nós vivamos em modo parcial a graça de ser nova criatura em Cristo.
A igreja vive da eucaristia
A igreja precisa da continua relação vital com a eucaristia, memorial sacramental do mistério pascal de Cristo, que criou e continua criando, com sua morte e ressurreição, a novidade desta relação intima com o Pai, com o próprio Jesus Cristo e o Espirito Santo. A mesa eucarística, com a familiaridade que cria com as três pessoas divinas, constitui a fonte que nos gera, o alimento que nos sustenta no caminho, e a meta da nossa peregrinação na fé. A igreja vive da Eucaristia – afirmava Papa São João Paulo II. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da igreja (Eccl de Euch, 2003). A igreja faz a eucaristia (a celebra) e a eucaristia faz a igreja (a gera e a faz viver), repetiam com força os antigos Padres da Igreja.
Esta ação do Espirito e da eucaristia que alimenta e faz crescer a igreja, investe cada pessoa e comunidade em todos os aspectos e expressões da vida. Não é limitada a uma experiência intima de consciência. Somos impelidos a dar testemunho da novidade de vida que nos anima, na doação reciproca, segundo as exigências da eucaristia, e na comunhão entre diferentes pessoas, sensibilidades e culturas, segundo o estilo do Espirito, que é fonte de diversidades e de comunhão.
Com profunda intuição da realidade cristã, o Concilio Vaticano II destaca a figura do bispo como fonte de unidade e de comunhão da igreja local, e declara: Por isso, todos devem dar a maior importância à vida litúrgica da diocese que gravita ao redor do Bispo, sobretudo na igreja catedral, convencidos de que a principal manifestação da Igreja se faz numa participação perfeita e ativa de todo o Povo santo de Deus na mesma celebração litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia (Const. Sacrosanctum Concilium n. 41).
Ao afirmar que na participação ativa e comum de todo o povo de Deus na eucaristia, celebrada pelo bispo na catedral, se faz a principal manifestação da igreja, o Concilio não pretende reduzir a vida dos fiéis à participação devota da celebração litúrgica. Pelo contrário, destaca que nela todos os fiéis encontram a nascente da vida que os faz atuar, com comportamentos coerentes, no lugar onde vivem e em cada condição de vida. As medidas do templo vivo do Senhor, que são os fiéis, coincidem com as medidas da vida dos mesmos em suas mais variadas expressões.
É a vida, vivida segundo os impulsos do Espirito, que se torna o sacrifício espiritual que os cristãos oferecem cada dia ao Senhor, no grande templo da existência cotidiana, e que na eucaristia unem ao sacrifício de Cristo (Lumen Gentium 34).
Vós sois templo vivo do Senhor e o Espirito habita em vós (I Cor 3,16).
Irmãos, pela misericórdia de Deus, eu vos exorto a vos oferecerdes como sacrifício vivo, santo e aceitável: seja esse o vosso culto espiritual. Não vos ajusteis a este mundo, e sim transformai-vos com uma mentalidade nova, para discernir a vontade de Deus (Rm 12,1-2).
A construção das primeiras comunidades cristãs e o dilema de quem poderia pertencer elas
Inicialmente, os primeiros cristãos faziam memória deste culto vital de Jesus, reunindo-se em seu nome para celebrar, ora na casa de uma família ora na casa de outra. Quando a comunidade cristã cresceu, adotaram, para marcar a dimensão existencial do culto cristão e viver a união com Cristo, a estrutura dos edifícios civis do foro romano, não a dos edifícios sagrados/templos erigidos para os deuses. A comunidade cristã constituía assim, a “igreja”, assembleia criada pelo Senhor, que mais tarde passará a designar o edifício onde, reunindo-se em nome do Senhor para celebrar a memória da sua morte e ressurreição, se tornará cada vez mais assembleia de cristãos e edifício de Deus.
A estrutura da nova comunidade dos discípulos nascida da fé em Jesus, se encontra ao centro da boa nova anunciada por Paulo à comunidade de Éfeso, recém nascida pela pregação do seu evangelho e composta de judeus e pagãos. Os efésios que provinham da herança espiritual e cultural judaica guardavam ainda interiorizado o convencimento que eles, em força das promessas de Deus aos patriarcas e da aliança com Moisés, tinham o direito exclusivo de pertencer ao novo povo de Deus, formado ao redor do anúncio de Jesus Cristo ou, pelo menos, de ter uma posição privilegiada respeito aos pagãos, considerados anteriormente “excluídos” da promessa.
Com uma “visão exclusivista”, ou pelo menos redutiva do reino de Deus inaugurado por Jesus, os efésios de origem judaica se viam como continuidade daquilo que toda pessoa religiosa pensava de si mesma na sociedade judaica. Segundo esta mentalidade, o título de pertença ao povo de Deus era duplo: ser da descendência de Abraão por raça e por observância das tradições da lei mosaica, ambos critérios extrínsecos de pertença.
Paulo derruba esta estrutura mental subindo de patamar, e considerando o projeto original de Deus, antes escondido no mistério insondável do seu amor e que em Jesus se torna visível. Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou...nos céus, em Cristo. Ele nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis diante dele, no amor. Nele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo...Nele também vós ...fostes selados pelo Espirito da promessa, o Espirito Santo, que é o penhor da nossa herança ...para o seu louvor e gloria (Ef 1, 3-5. 13-14).
Da mesma forma que Jesus viveu, do nascimento até a morte na cruz por amor, os cristãos são chamados a viver a própria existência, animada pelo Espirito de Deus, como um culto verdadeiro (cf Jo 4, 23-24). A fonte da vida do povo de Deus é a própria Santa Uni-trindade, que nos faz participes da sua própria vida e faz de nós um canto vivente de louvor ao seu amor. A Santa Trindade se torna também a meta da nossa peregrinação na fé, animados pelo Espírito do Pai. Quando somos gerados à vida nova pelo amor do Pai e estamos caminhando na fé, constituímos o corpo vivente de Cristo, que é a igreja-comunidade, da qual ele é a Cabeça que tudo anima e unifica em si mesmo (Ef 1,22-23).
O corpo de Cristo – como todo corpo (cf 1Cor 12, 12-18) - não admite divisão, mas harmonia na diversidade das vocações e das tarefas. Por isso é preciso passar de uma “visão exclusiva” a uma “visão inclusiva”, e de “critérios extrínsecos” de pertença a “critérios intrínsecos”. A diversidade entre os membros, é exigência de um corpo sadio... As diferenças encontram em Cristo o ponto de união e de harmonia.
Naquele tempo estáveis sem Cristo, excluídos da cidadania de Israel, estranhos às alianças... Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que um tempo estáveis longe, fostes trazidos para perto, pelo sangue de Cristo. Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação...a fim de criar em si mesmo um só homem novo...em um só corpo por meio da cruz...pois, por meio dele, nós, judeus e gentios, num só Espirito, temos acesso ao Pai (Ef 2, 12-14; 15-16; 18).
Jesus, rosto da misericórdia de Deus
Jesus, nos seus gestos e no seu ensino, pratica e prega a “inclusão” no reino de Deus dos mais excluídos entre os seres humanos. Antes, afirma que eles são os privilegiados pelo Pai, como no relato da cura do leproso (Lc 5, 12-15), da vocação de Levi/Mateus; quando ia às refeições festivas com os pecadores (Lc 5, 27-32), quando perdoa a pecadora por seu muito amor (Lc 7,36-50), etc. Ele propõe um programa de vida para os discípulos: Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordiosos...Dai e vos será dado (Lc 6, 36-38).
É particularmente ilustrativo o relato da conversão progressiva de Pedro e da comunidade de Jerusalém ao estilo inclusivo de Jesus quando ele é chamado a entrar na casa do centurião romano (At 10, 1- 48), coisa proibida para os judeus; ou no relato da fundação da igreja de Antioquia, depois da morte de Estêvão devido à perseguição que se sucede em Jerusalém; ou ainda no envio de Barnabé e seu encontro com Saulo/Paulo (At 11, 1- 25).
A comunidade nasce da energia vital do Espírito Santo derramado da cruz
Não são as pessoas que constroem a unidade e as relações vitais entre os membros do único corpo de Cristo, mas Ele mesmo, com a energia vital do Espirito Santo, derramado da cruz, a nova arvore da vida!
O encontro com Cristo inicia um processo dinâmico de expansão da vitalidade surpreendente do crucificado que, na medida em que alcança as pessoas, as envolve num dinamismo de novidade que atinge as raízes de cada um e a totalidade das relações. Gera um organismo vivente que continua a crescer sob o impulso vital do Espirito, até alcançar sua plenitude naquele que é sua nascente: Cristo.
Portanto já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele, bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois co-edificados para serdes habitação de Deus, no Espírito (Ef 2, 19-22).
O Espirito gera diversidade de dons e comunhão
Passando da imagem do corpo, articulado na variedade dos membros, Paulo utiliza outras imagens para explicar a comunidade gerada pelo Espírito. Fala da pátria comum, depois da casa familiar que acolhe todos os membros da mesma e única família de Deus Pai. E por fim, propõe a imagem do templo de Deus, no qual cada um é, ao mesmo tempo, pedra viva inserida nas paredes que se apoiam sobre a pedra angular de Cristo e do fundamento dos apóstolos, ele mesmo santuário pessoal habitado pelo Espirito Santo (cf Ef 2, 19-22). A multiplicidade das imagens (6!) que Paulo utiliza, deixa vislumbrar o mistério do dinamismo intrínseco que anima a experiência pessoal e comunitária - única a fonte, o Senhor, infinita sua capacidade expressiva.
Ao mesmo tempo destaca a pluralidade de experiências, sensibilidades, vocações e tarefas, nas quais se articula a vida cotidiana da comunidade. Ela encontra sua composição fecunda na única nascente da vida que é o Pai, e no amor sacrificado de Cristo, derramado na comunidade pelo Espirito Santo. Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo... que tudo realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz (I Cor 12, 4.11).
Como pode subsistir em nós, - se cristãos – certa mentalidade de discriminação, variada e justificada por mais diversas motivações? Quantos dramas das nossas famílias tem nessa mentalidade as próprias raízes?
Pensemos na postura, nos gestos e no magistério do Papa Francisco, quando solicita à Igreja de passar da dinâmica de “exclusão” para convertê-la em dinâmica pastoral e política de “inclusão”! Quantas resistências e oposições encontra na própria igreja e na sociedade civil...
O Sínodo dos bispos, convocado para 2023 e 2024, tem como fim ensinar à igreja a aprender a maneira de pensar e de agir sinodal, isso é em conjunto e caminhando juntos, como modo de ser e de atuar. A iniciativa do Sínodo é, sem dúvida, um marco importante do seu ministério para a renovação da igreja, segundo as linhas traçadas pelo Concilio, a fim de que a igreja se torne mais claramente testemunha do evangelho. É o convite a todos os membros da igreja, a aprender o estilo de vida e da missão vivida por Jesus, e assumida pelas primeiras gerações cristãs. Longo é o caminho para chegar a esta meta, e a vida apresenta sempre novos desafios no processo da nossa configuração a Cristo.
Mas é grande graça e dom poder viver, desde já, sob o impulso da Santa Trindade, e caminhar juntos em comunhão reciproca, que nos faz gozar, de antemão, o penhor da nossa esperança e da meta do nosso caminho: a vida plena na comunhão com o Pai, o Filho, e Espirito Santo. Como canta a igreja no seu cântico de louvor.