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As cordas do coração: uma história musical

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Ana Lydia Sawaya - publicado em 25/06/23
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Há uma história impressionante que aconteceu com uma das maiores pianistas russas do século XX, Marija Judina

A música tem a capacidade de transformar-nos, de mover-nos, co-mover-nos, carregar-nos junto consigo, e nos fazer mudar de posição, de pensamento e de sentimento. Um pesquisador que estudou esse fenômeno descreveu-o assim: 

Uma canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um momento marcante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa ‘aquela’ música no rádio, emoções como saudade, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns casos, repensar sua existência. Mas muitas vezes essa experiência (não julgada) acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez, uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para as futuras lembranças e sensações. (G. Junior, Cardinales bonitas, Revista FAPESP 120)

Por que é assim? O nosso coração é feito de cordas e quando estas se sintonizam com uma harmonia certa, todo o nosso ser se comove. O coração humano foi feito para algo, alguém que está fora dele, além dele, e nosso coração estará sempre procurando-o. Dizia Santo Agostinho: “o nosso coração foi feito para ti Senhor e está inquieto enquanto não repousa em ti” (Confissões I, 1,1).Todos os seres humanos são assim, quer tenham uma fé ou não. Há uma canção muito famosa Allelluyah de Leonard Cohen que conta a história do rei Davi e diz que até Deus se comoveu com os acordes que Davi compunha quando tocava sua lira, tornando-se para sempre seu amigo:

There was a secret chord / That David played / And it pleased the Lord. / It goes like this / The fourth, the fifth / The minor fall / The major lift / The baffled King / Composing hallelluyah

Havia um acorde secreto /Que David tocou / E que agradou ao Senhor. / É assim / A quarta, a quinta / A nota menor cai / A nota maior sobe / O rei perplexo e maravilhado / Compondo hallelluyah

É preciso saber reconhecer com inteligência e atenção, com cuidado de si, esses momentos maravilhosos. Neles reside não só uma profunda experiência de felicidade, mas a descoberta da direção certa na vida, condizente com o nosso “eu”. 

O mundo de hoje nos confunde e nos subtrai esses momentos de verdade, nos entregando espaços e tempos ilusórios, que podem nos excitar, mas não nos maravilhar. É preciso saber reconhecer a diferença imensa que existe entre o ser excitado por algo e o ficar maravilhado. A primeira é uma experiência alienante, enquanto a segunda é conforme o nosso coração. Essa experiência é como uma oração: nos coloca em contato com o infinito, com o fora do tempo, com a verdade do tempo. E com o desejo verdadeiro que mora no nosso coração.

Há uma história impressionante que aconteceu com uma das maiores pianistas russas do século XX, Marija Judina. Sua história é muito tocante, viveu sua vida vendo seus amigos artistas e escritores sendo presos e mortos pelo regime. Mas ninguém teve a coragem de tocar nela até o fim da sua vida...

Conta-se que uma das suas execuções mais famosas era o Concerto n. 23K 488 de Mozart do qual ela tocava o segundo movimento interpretando-o como uma oração, um réquiem para as vítimas dos campos de concentração de Stalin. Um dia Stalin escuta no radio uma apresentação dela tocando esse concerto, e fica tão impressionando que pede que se compre imediatamente o disco. Mas o disco não existia porque o concerto tinha sido transmitido ao vivo (porque ela era proibida pelo regime de gravar). Assim, sem ter coragem de explicar que a pianista não condizia com a ortodoxia política do ditador e não era agraciada com muita publicidade e sucesso, os comissários da rádio convocam com urgência Marija e a orquestra, o concerto é gravado durante uma noite às pressas e o disco, confeccionado com poucos exemplares e é entregue ao ilustre admirador. Stalin é generoso e manda uma grande soma de dinheiro para a pianista. Ela lhe envia uma carta de resposta dizendo: “Agradeço-lhe muito pela sua ajuda, Iosif Vissarionovič. Rezarei dia e noite pelo senhor e pedirei a Deus que perdoe os seus graves pecados contra o povo e a nação. Deus é misericordioso, o perdoará. O dinheiro o entregarei para a restauração da minha paróquia”. Conta-se que o disco com o concerto dela estava no gramofone de Stalin, quando o encontraram morto (cf. G. Parravicini, Marija Judina, più della musica, ed. La casa di Matriona, 2010, Milano, Italia, p. 81). Era exatamente a música que ela tocava para as milhões de pessoas mortas pelas atrocidades dele... 

O que é um coração misericordioso?

Que força divina tem uma oração de intercessão pelas pessoas que realizaram grandes atrocidades na história? 

Marija Judina foi marginalizada pela cultura oficial na União Soviética, mesmo sendo reconhecidamente um prodígio em termos de perfeição musical e técnica. O regime a considerava um perigo e temia a sua fé, declarada e pública. Marija possuía um temperamento indomável e uma total independência no seu modo de ver tudo.

Estas características não eram simplesmente oriundas do seu caráter, mas nasciam de um núcleo interior que ela mesmo reconhecia como ineliminável, irredutível e sempre presente em cada ser humano. Gostava de repetir, ao falar de si mesma, “Vivo em um anelo de simpatia mundial”, e ainda, “Tenho uma consciência muito clara dos meus pecados e das minhas fraquezas, mas eu me atrevo a pensar”. 

Dizia que a grandeza do ser humano não está nos seus dotes, mas no “impulso para ousar” que nasce com cada pessoa, no seu coração que é sede de infinito, e morre, somente, depois dela. Repetia, citando Dostoevskij, que “seria necessário cortar a língua de Cícero, cavar os olhos de Copérnico, lapidar Shakespear...” Dava-se conta que ela tinha recebido um grande dom e por isso estava sempre disposta a compartilhá-lo generosamente com todos. Muitas vezes foi à fronte para tocar para os soldados durante a guerra...

Quando seus dedos tocavam o teclado do piano, afirmavam seus ouvintes, era-se transportado para um outro mundo, transfigurado, que purificava a realidade das misérias e miudezas, infundindo nelas sentido e esperança, dando-lhes beleza. O fascínio que Marija causava nos seus ouvintes vinha do fato, diziam, que os seus não eram apenas concertos, mas um testemunho, uma “apresentação sacra”, uma “catarse purificadora”.

Marija Judina buscou a vida inteira a beleza, jogando-se na realidade com inteireza e apaixonadamente; com interesse e simpatia por tudo e por todos que encontrava. A beleza, como padre Vsevolod Špiller disse em seu funeral, não era para ela uma categoria estética, mas a energia da gloria de Deus que transfigura o mundo... abrindo caminho para o outro mundo, para uma realidade maior, onde habita a graça de Deus. 

Essa sua urgência se traduziu também na busca pela nova música contemporânea e pelos compositores da sua época, como ela mesma explicou uma vez: a novidade nasce cada dia, quando se espera pelo milagre inaudito que vem de Deus, do mundo, de outra pessoa, para nos surpreender.

Marija nasce em 9 setembro de 1899 em Nevel’ próximo à Bielorrússia. Era judia e seu pai um médico reconhecido. A família vivia em um território onde, desde Catarina a Grande, era permitido que os judeus vivessem em paz, até serem expulsos e ter suas casas queimadas (inclusive a dela) pelos nazistas em 1941. 

Descobre cedo sua arte e sua vocação e a necessidade de se entregar sem reservas. É enviada pela família, ainda muito jovem, ao conservatório, e tem uma trajetória brilhante e excepcional. Frequenta grupos onde se discute filosofia, arte, religião, e tem muitos amigos entre intelectuais, artistas e religiosos como Pavel Florenskij, Aleksandr Men, Dmitrij Šostakovič, Boris Pasternak. Muitos dos quais vê serem presos e mortos, uma constância ao longo de toda a sua vida...

Descobre o cristianismo, se converte e torna-se ortodoxa. Escreverá no seu diário: Cada pessoa deve justificar o seu próprio caminho pessoal. A minha fé na excepcionalidade e sublimidade da arte o justifica. No fundo, nós todos – homens – chegaremos no mesmo ponto, à vida do espírito, a um outro plano do ser, mas chegaremos por estradas diversas, uns através da arte, outros através do altruísmo, outros ainda, talvez, através do amor. Cada um a seu modo: as estradas são tantas quantos são os homens. É nesta multiforme variedade, que conduz à unidade absoluta, onde reside toda a beleza e a profundidade da vida humana. E nisto está também a dor (12/11/1916).

Recebe grandes prêmios como pianista, mas vai progressivamente sendo marginalizada pelas suas posições abertamente contra o regime soviético. É impedida de tocar em grandes salas de concerto, assim como de gravar recitais. Tudo o que ganhava distribuía a quem tinha mais necessidade do que ela. Termina sua vida quase sem nada.Quem era afinal Marija Judina? Um mistério para todos os que a conheceram e também para nós. Alguém que tinha o extraordinário fascínio de estar na terra, mas já ser cidadã do céu. Parravicini diz em seu livro que o seu era um coração misericordioso semelhante àquele descrito pelos Padres da Igreja: um coração que queima por toda a criação, e se derrete, e não pode suportar escutar ou ver o mínimo sofrimento em qualquer criatura, e em cada instante oferece orações e chora por elas, por causa da grande misericórdia que a comove, à semelhança de Deus (Isaac o Sírio). Como será que Deus escutou suas orações pela sua grande Rússia e por seu terrível ditador Stalin, um dos mais cruéis da história?... O segredo de um coração misericordioso pertence a Deus.