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A liturgia é escola de vida – II

Mosteiro São Bento em São Paulo
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Don Emanuele Bargellini - publicado em 24/08/23
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Sendo a liturgia uma experiência integral, para que a participação nesta seja autêntica e integral é necessário que seja ativa e de ordem intelectual (conhecimento – estudo), espiritual (coração puro e atenção interior) e ritual (interação corpórea). Entenda:

Estudar a liturgia: por que e como 

No primeiro artigo (A LITURGIA É ESCOLA DE VIDA I) nos debruçamos sobre o fato que na vida da comunidade monástica, a liturgia é antes de tudo experiência de vida, de graça renovadora e exigente, de energia vital do Espírito, que traduz os gemidos da criação em louvor e sustenta sua esperança. A liturgia é, não só, expressão da nascente e do cume da vida do monge e da monja, como da igreja inteira (Sacrosanctum concilium 10 - SC). 

Para viver a liturgia com autenticidade, cumpre, antes de mais nada, cultivar atitudes interiores apropriadas; mas mesmo isso não basta para gozar de toda sua riqueza, pois é preciso conhecê-la bem. Os livros litúrgicos que seguimos para celebrar o mistério pascal de Cristo são fruto e expressão da fé da igreja e da sua caminhada no tempo através das diferentes culturas. São, também, expressão de uma certa visão da estrutura antropológica da pessoa humana, da ritualidade, etc. A fé da igreja se reflete na sua liturgia e modela suas formas de celebrá-la, assim como a liturgia exprime e alimenta a fé da igreja. A lex orandi (a modalidade de celebrar) e a lex credendi (a maneira de elaborar e expressar a fé), interagem reciprocamente, como afirma a tradição da igreja e confirma a experiência cotidiana. 

A expressão Lex credendi – lex orandi significa que a fé da igreja determina sua modalidade de rezar, enquanto o modo de celebrar modela sua fé. Em outras palavras, a modalidade de rezar manifesta e alimenta a fé da igreja e a fé determina o modo de celebrar. Isso vale não apenas em nível doutrinal, mas, antes de mais nada, enquanto experiência viva da fé. Viver a vida pessoal e da comunidade ao ritmo e no horizonte da liturgia, constitui uma maneira privilegiada de sintonizar o coração e a mente. Para tanto, como acontece em todo processo de iniciação, ou em qualquer atividade profissional, é preciso passar através de um processo de aprendizado que une a experiência gradual e perseverante com a reflexão teórica.

Tudo isso ressalta a necessidade de fazer da liturgia também um objeto de estudo cientifico, teológico, espiritual, pastoral. Só o estudo adequado da liturgia permitirá conhecer seus conteúdos teológicos e espirituais, o sentido e a importância da ritualidade na experiência humana em sua relação com o divino, o processo histórico da formação do corpo litúrgico existente, e acompanhar o processo da encarnação da igreja e da sua liturgia ao longo dos séculos, nas diferentes culturas e contextos humanos. Este processo se dá através do binômio continuidade e criatividade e está acontecendo também em nosso tempo, graças à reforma promovida pelo Concilio Vaticano II, depois de quase cinco séculos de aparente imobilismo (mais do que estabilidade), do rito romano. 

É fundamental, para que a liturgia possa atingir o escopo de ser uma escola de vida, conhecer e saborear o dom da vida que recebemos da igreja nossa mãe através da liturgia. Para tanto, é necessário distinguir os elementos essenciais e imutáveis da fé e da tradição, e os que são frutos colaterais e contingentes e, por isso, suscetíveis de mutação legítima e às vezes necessária. Este foi o objetivo perseguido pelo Concilio Vaticano II, ao promover a grande reforma litúrgica, com o intento de favorecer uma melhor participação do povo de Deus, e especialmente, uma maior interioridade. 

Cinquenta anos se passaram do início desse processo de renovação que, por carregar consigo consequências de grande significado histórico, é ainda jovem. Estudos acadêmicos e seminários promovidos por várias instâncias eclesiais e acadêmicas para o quinquagésimo aniversário da promulgação da SC em 2013 mostraram avanços significativos, mas também, falhas, resistências, assim como a exigência de aprofundar as raízes da reforma conciliar. Um caminho a cumprir com inteligência espiritual, sentido de comunhão eclesial e sábia criatividade, valorizando as indicações presentes nas Introduções aos vários livros litúrgicos, e as ulteriores publicações do magistério da igreja. Quantas pessoas conhecem de verdade e em profundidade esses textos?

A pedagogia da igreja se exprime na liturgia

A pedagogia litúrgica desenvolve, por assim dizer, um método que combina o movimento da água do rio que escorre sem interrupção, e o da gota miúda que, batendo sem interrupção no mesmo ponto, acaba modelando e até perfurando a pedra. Sabemos que a primeira escola de aprendizagem é a experiência viva, acompanhada pela sábia mistagogia (iniciação aos mistérios divinos dos sacramentos) de quem tem experiência consolidada e palavra iluminadora.

O objetivo do estudo da liturgia é, assim, promover a participação interior, enriquecida pelo conhecimento teórico e crítico. É necessário aprender a desenvolver, na fidelidade criativa às indicações dos livros litúrgicos, um próprio estilo celebrativo que anime e exprima a alma profunda de cada comunidade, em comunhão com toda a igreja (inculturação litúrgica). É preciso também, chegar a unificar os caminhos da nossa caminhada espiritual, pessoal e comunitária, fazendo da experiência litúrgica (tão maciça em nível ritual) a nascente da energia do Espírito e o cume onde colocar, junto com a oferta de Cristo, a oferta do nosso culto existencial em espírito e verdade ao Pai (cf SC 10). Esta é a estrada para superar qualquer forma de antagonismo entre piedade pessoal e liturgia, ou a simples justaposição delas, para chegar a uma integração harmoniosa, onde um elemento alimenta e estimula o outro. 

Enquanto fonte de água viva, a liturgia alimenta o desenvolvimento livre da vida e da oração, enquanto cume, acolhe a convergência dos trilhos que acompanham a subida de cada um ao monte do Senhor. Os trilhos objetivos que a liturgia nos propõe cotidianamente e ao longo do ano litúrgico, não impedem a espontaneidade da oração pessoal, mas a alimentam, a orientam, e, quando necessário, a corrigem, para não cair no subjetivismo e na simples emoção. A espontaneidade da oração pessoal, hoje promovida sobretudo nos “grupos de oração”, deveria contribuir a dar respiro pessoal e ânimo à celebração litúrgica. Os formulários das Preces que acompanham o canto dos Salmos nas Laudes e nas Vésperas, assim como a celebração da eucaristia, não são somente “formulas” para serem repetidas. São “modelos” de oração inspirada pela palavra de Deus que as precede, como a escuta na fé precede sempre o diálogo orante com o Pai.  

A linguagem litúrgica é simbólica – sacramental

A liturgia articulada por ações e palavras, está em continuidade com a sacramentalidade de Cristo e da igreja (cf SC 2; LG 1.8), envolve a pessoa na sua globalidade (espírito – psique – corpo), nas suas relações (individuo – comunidade – ambiente), na sua presença operosa e responsável na história, e na abertura ao mistério de Deus. 

Todo método do estudo é determinado pelo objetivo que se procura alcançar. O estudo da liturgia deveria ser análogo ao método da lectio divina, isto é, histórico-crítico e sapiencial ao mesmo tempo. Assumir com seriedade as exigências da littera (letra) para chegar ao espírito. O ponto de partida privilegiado é a própria experiência da celebração, com a riqueza das suas expressões rituais (per ritus et preces através dos gestos rituais e dos textos litúrgicos- SC 48), iluminados pela reflexão teológica e pelas várias disciplinas históricas, antropológicas e teológicas.

A igreja “é em Cristo, sacramento universal de salvação

A identidade e a atividade da igreja fazem referência a Cristo, único lugar do encontro pleno e definitivo de Deus conosco. A pessoa de Cristo é “sacramento”, na dinâmica da sua encarnação, morte, ressurreição, ascensão e envio do Espírito. A igreja, nascida do lado aberto de Cristo dormente na cruz, como nova Eva do novo Adão participa da sacramentalidade de Cristo. Ela desenvolve de maneira eficaz sua identidade sacramental, sua função de mãe que gera à vida do Espírito, e de mestra da fé, sobretudo, através da liturgia e das atividades sacramentais, memorial único e multíplice do mistério pascal.

A igreja nos gera à fé evangelizando-nos e iniciando-nos no mistério pascal de Cristo, fazendo da pia batismal o novo seio materno no qual o Espírito nos gera à vida nova em Cristo. A função sacramental da igreja está a serviço do autor da vida e da fé: o próprio Cristo Jesus. Ela é conexa à condição peregrinante do povo de Deus na história, acompanhando-o desde o início (nascimento – batismo) até a morte (liturgia dos funerais). “Deste modo a igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê, de forma que, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela tenha plena realização a palavra de Deus” (cf LG 8 - DV 8; Ordenamento das leituras da missa, n.8).

Esta tensão entre encarnação na história e abertura ao mistério divino que a transcende, marca as fibras profundas da alma e da estrutura da igreja, como lembra a Lumen Gentium quando diz que já na terra a igreja é assinalada com a verdadeira santidade:

Já chegou, pois, a nós, a plenitude dos tempos (cfr. 1 Cor. 10,11), a restauração do mundo foi já realizada irrevogavelmente e, de certo modo, encontra-se já antecipada neste mundo: com efeito, ainda aqui na terra, a Igreja está aureolada de verdadeira, embora imperfeita, santidade. Enquanto não se estabelecem os novos céus e a nova terra em que habita a justiça (cfr. 2 Ped. 3,13), a Igreja peregrina, nos seus sacramentos e nas suas instituições, que pertencem à presente ordem temporal, leva a imagem passageira deste mundo e vive no meio das criaturas que gemem e sofrem as dores de parto, esperando a manifestação dos filhos de Deus (cfr. Rom. 8, 19-22). (LG 48)

A liturgia necessita de participação ativa e integral da pessoa

Sendo a liturgia uma experiência integral, para que a participação nesta seja autêntica e integral é necessário que seja ativa e de ordem intelectual (conhecimento – estudo), espiritual (coração puro e atenção interior) e ritual (interação corpórea). Essa foi a razão inspiradora e o objetivo da reforma litúrgica do Vaticano II. Aqui é preciso lembrar mais uma vez, que o primeiro sujeito ativo na celebração é o próprio Espírito do Senhor, assim como ele é o inspirador da Palavra/ação de Deus na história, testemunhada na escritura. Na celebração, o Espírito “escreve” nos corações dos fiéis com a colaboração ativa deles, mais uma página do livro da vida, que está sempre aberto nas mãos de Deus. Diz o Ordenamento das leituras da missa:

Para que a palavra de Deus realize de fato nos corações aquilo que ressoa aos ouvidos, requer-se a ação do Espírito Santo, por cuja inspiração e auxilio a palavra de Deus se torna o fundamento da ação litúrgica e a norma e o sustento de toda a vida. Por conseguinte, a ação do Espírito Santo não só precede, acompanha e segue toda a ação litúrgica, mas também sugere ao coração de cada um, tudo aquilo que é proferido na proclamação da palavra de Deus para toda a assembleia dos fiéis; e consolidando a unidade entre todos, também reanima os diversos carismas e suscita múltiplas atividades. 

Cumpre aqui lembrar as páginas luminosas da exortação apostólica Verbum Domini, nas quais o Papa Bento XVI, resume com clareza o ensino do Concilio e dos padres sinodais e testemunha mais uma vez sua profunda sensibilidade litúrgica e sua preocupação de pastor, para indicar o caminho de uma autêntica interiorização da renovação litúrgica .

No diálogo/relação vital com o Espírito se realiza a “participação ativa” dos fiéis, que tem todas as características de resposta à ação do Espírito. Diz a esse respeito o Sacrosanctum concilium:

É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é, por força do Batismo, um direito e um dever do povo cristão, «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Ped. 2,9; cfr. 2, 4-5). (SC 14)

E ainda:

É por isso que a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações; sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; deem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja tudo em todos. (SC 48)

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