Leão XIV deixa claro logo nos primeiros parágrafos que a exortação apostólica “Dilexi Te”, carrega sua assinatura e é um “projeto recebido como herança” do Papa Francisco. Um trabalho que, faz questão de frisar o Pontífice, “estou feliz por fazer meu”, embora com o acréscimo de “algumas reflexões”, e de “propô-lo no início do meu pontificado, partilhando o desejo do amado predecessor de que todos os cristãos possam perceber o forte nexo que existe entre o amor de Cristo e a sua chamada a nos aproximarmos dos pobres”.
O texto foi apresentado pelo Vaticano em 9 de outubro durante um encontro com a imprensa. O Cardeal Michael Czerny, Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, apresentou os principais pontos do documento. Segundo o Cardeal, o contato com os que sofrem é um encontro concreto com a salvação. "A pobreza, um enorme problema social, é também um tema teológico. Através dos pobres, Deus fala à Igreja, a fé se torna real na misericórdia e no serviço que derrubam barreiras."
O primeiro documento magisterial de Leão XIV se abre com um versículo do Apocalipse, o mesmo que o Papa Francisco havia escolhido para abrir um texto “sobre o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres”, recorda Leão XIV, e imaginava Cristo a dirigir-se “a cada um deles dizendo: tens pouca força, pouco poder, mas “Eu te amei”. “Dilexi Te” em latim, justamente.
Fé e os pobres
Com 128 páginas, na edição italiana, o documento retoma a “história bimilenar de atenção eclesial para com os pobres”. O Papa Leão sublinha que “o cuidado dos pobres faz parte da grande Tradição da Igreja, como um farol de luz que, a partir do Evangelho, iluminou os corações e os passos dos cristãos de todos os tempos”.
O primeiro Papa estadunidense considera “necessário insistir” nesta dimensão, explicando que a caridade é “uma força que muda a realidade, uma autêntica potência histórica de mudança”, pois “existe um vínculo inseparável entre a nossa fé e os pobres”. Além disso, “cada renovação eclesial teve sempre entre as suas prioridades a atenção preferencial aos pobres”: de Francisco de Assis ao Concílio Vaticano II, marcos citados nos 121 parágrafos.
Mãe dos pobres
Dividido em cinco capítulos, o texto demonstra a preocupação do Papa Leão XIV com a unidade com seus predecessores, citando longamente Francisco, mas também Paulo VI, Bento XVI e João Paulo II. O Cardeal Czerny lembra o apelo de São João Paulo II para que os próprios desfavorecidos assumam o protagonismo: "São João Paulo II exortou os pobres a se tornarem protagonistas da transformação eclesial e social. Por exemplo, os movimentos populares, com a sua energia moral, demonstram que a justiça surge da inclusão dos excluídos."
É deste documento que emerge a Igreja que Leão XIV sonha e da qual “o mundo precisa hoje”: uma Igreja “mãe dos pobres”; uma Igreja “das Bem-aventuranças” que “dá espaço aos pequenos e caminha pobre com os pobres”; uma Igreja que “não conhece inimigos a combater, mas apenas homens e mulheres a amar”.
Fé e realidade social
A “Dilexi Te” reitera que os pobres não são uma “categoria sociológica”, mas a “carne de Cristo”. Eles reconduzem ao “essencial da fé”: o Filho de Deus que “se esvaziou” e “se fez pobre”.
Também participou da apresentação o cardeal polonês Konrad Krajewski que exerce a função de Esmoleiro Apostólico. "Nós somos o pronto-socorro do Papa Leão, somos a ambulância que está sempre pronta para partir para ajudar em seu nome os necessitados", assim define seu serviço à Igreja.
Krajewski enfatizou que a missão de caridade deve seguir o modelo de Jesus, que ia ao encontro do sofrimento, sem burocracia. "O que fazia Jesus durante todo o dia? Saía cedo, isto sabemos, e da manhã à noite procurava as pessoas que precisavam Dele. Ele mesmo procurava as pessoas”.
O Papa adverte contra a ideia de que o religioso possa ser desvinculado da promoção integral: “Há quem continue a dizer: 'A nossa tarefa é rezar e ensinar a verdadeira doutrina'... Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção integral, acrescentam que só o governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria, ensinando-os antes a trabalhar”. O Papa questiona: “Muitas vezes me pergunto porque é que, apesar de tal clareza nas Sagradas Escrituras a propósito dos pobres, muitos continuam a pensar que podem excluí-los das suas atenções”.
A exortação urge a debruçar-se sobre os “feridos da humanidade”, os “prediletos do Evangelho”. “É preciso recordar que a religião, especificamente a cristã, não pode ser limitada ao âmbito privado como se os fiéis não devessem preocupar-se também com os problemas que dizem respeito à sociedade civil e aos acontecimentos que interessam aos cidadãos”, explica. Leão XIV lamenta a falta de interesse de alguns grupos cristãos pelo bem comum e pela “defesa e promoção dos mais fracos e desfavorecidos”. A “caridade não é uma via opcional, mas o critério do verdadeiro culto”. Permanecer “indiferentes” ao grito dos pobres é um pecado e afasta do coração de Deus. O Papa lembra: “Quem quer que seja, até o inimigo, que se encontre em dificuldade, merece sempre o nosso socorro”.
Os rostos da pobreza
Na Exortação Apostólica, os pobres têm múltiplos e “cada vez mais numerosos” rostos. Eles se manifestam em: Quem sofre por falta de água e comida ou pela subnutrição; Famílias que não chegam ao fim do mês; Mulheres vítimas de exclusão, maus-tratos, violência.
O documento fala sobre quem enfrenta a pobreza moral e espiritual ou quem não pode estudar, sendo a educação um dever e o conhecimento um “requisito fundamental para o reconhecimento da dignidade humana”.
Leão aponta também a questão dos migrantes, nos quais a Igreja “sempre reconheceu uma presença viva do Senhor”. Onde o mundo constrói muros, a Igreja constrói pontes, sabendo que “em cada migrante rejeitado é o próprio Cristo que bate às portas da comunidade”; e recorda os doentes, nos quais a comunidade eclesial vê “prontamente o Senhor crucificado”; bem como os prisioneiros, que os cristãos são chamados a ajudar, combatendo as “escravidões modernas: o tráfico de seres humanos, o trabalho forçado, a exploração sexual, as diversas formas de dependência”.
O Cardeal Krajewski destacou a importância de um olhar atento para as diversas necessidades recordando o seu trabalho com o papa anterior: “No início do pontificado do Papa Francisco, tínhamos tantos migrantes, tantos refugiados... Descobrimos que precisavam, não tanto de sanduíches, mas precisavam de cartões telefónicos. Para ligar aos familiares e dizer: 'Sobrevivi, estou em Roma, fiquem tranquilos'. Temos de ser muito elásticos porque este documento também nos diz como devemos comportar-nos com os refugiados marginalizados: acolher, proteger, promover e integrar”.
A crítica à economia
O documento tem uma forte valência política ao afirmar que “a falta de equidade é a raiz dos males sociais”. O Papa denuncia a miséria de tantas pessoas e aponta para crescentes desigualdades e o crescimento de “algumas elites de ricos que vivem na bolha de condições luxuosas”.
Ele censura “uma visão da existência centrada na acumulação da riqueza e no sucesso social a todo custo”, obtido “à custa dos outros e aproveitando ideais sociais e sistemas político-econômicos injustos que favorecem os mais fortes”.
Leão XIV condena a concepção falsa da “meritocracia onde parece que só têm méritos aqueles que tiveram sucesso na vida”; a escolha de quem considera “razoável organizar a economia sacrificando os povos”; as manipulações informativas e digitais que minimizam a situação dos pobres ou tornam irrelevantes tragédias como a do pequeno migrante Alan, criança estendida sem vida em uma praia do Mediterrâneo;
O Papa aponta também para os cristãos que se deixam “contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas” ou orientações políticas e econômicas enganadoras.
O Pontífice lança perguntas que visam iluminar as consciências: “Os menos dotados não são pessoas humanas? Os fracos não têm a nossa mesma dignidade? Aqueles que nasceram com menos possibilidades valem menos como seres humanos e devem apenas limitar-se a sobreviver? Das respostas que damos depende o valor das nossas sociedades e dela depende também o nosso futuro”.
Testemunhas na história da Igreja
Três capítulos da Exortação Apostólica fundamentam teologicamente a opção preferencial pelos pobres. O Papa afirma que “Deus é o refúgio dos pobres” no Antigo Testamento e que Cristo é o Messias dos pobres e para os pobres.
O documento faz um vasto percurso por numerosas “testemunhas” ao lado dos últimos, desde os Padres da Igreja (como João Crisóstomo e Agostinho) até figuras mais recentes como Santa Teresa de Calcutá e a religiosa baiana Santa Dulce dos pobres. Citando Madre Teresa, o Cardeal Czerny disse: “"Os pobres, disse Madre Teresa, não precisam da nossa piedade, mas do nosso amor respeitoso. Tratá-los com dignidade é o primeiro ato de paz. Somente uma sociedade com os descartados no seu centro pode ser verdadeiramente pacífica."
O Cardeal Krajewski contou um testemunho pessoal sobre um encontro com o Papa Francisco, em uma noite, depois de um dia de extenuantes atividades. Após apresentar os números do trabalho de acolhimento aos pobres na Praça São Pedro, o cardeal das mais de 6 mil pessoas que tomam banho por mês e dos mais de dois mil atendimentos médicos, o Papa Francisco disse: “Estás fora do Evangelho, não te dás conta que cuidas de Cristo, que vestes Cristo, que acolhes Cristo, que cortas os cabelos precisamente ao mesmo Cristo, que vem na praça, sob as faces diferentes do mundo, mas é Ele mesmo".
Dessa lição o cardeal tirou como conclusão que “que nós devemos reconhecer no pobre o mesmo Cristo. Talvez no início não nos apercebamos, mas ajudamos diretamente a Ele. Diretamente a Ele", insistiu.
O amor pelos pobres, segundo assegura Leão XIV é “garantia evangélica de uma Igreja fiel ao coração de Deus”. O Papa exorta, por fim, a redescobrir o valor da esmola, que, citando João Crisóstomo, é “a asa da oração: se não adicionares uma asa à tua oração, dificilmente poderá voar” e que permite “tocar a carne sofredora dos pobres”.











