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As lágrimas, um caminho para Deus

WOMAN CRYING,

Photographee.eu | Shutterstock

Edifa - publicado em 14/12/20

No tempo de Homero, os guerreiros mais valentes deixavam que suas lágrimas caíssem. Nos dias de hoje, as lágrimas são consideradas uma marca de fraqueza. No entanto, elas podem ser um verdadeiro sinal de força e podem dizer muito sobre nós

Reprimidas ou não, as lágrimas podem ter mil faces. Irmã Anne Lécu, dominicana, filósofa, médica de encarcerados e autora de Lágrimas, nos explica como as lágrimas podem se tornar um dom em nossas vidas.

“Felizes os que choram, pois serão consolados” (Mt 5, 4). Como você interpreta essa Bem-aventurança considerando que você trabalha num meio de grande sofrimento?

Anne Lécu : É uma bem-aventurança provocativa que deve ser interpretada sem exageros. De fato, existem muitas pessoas que passam por situações difíceis, que choram, que não rirão amanhã ou depois de amanhã e que não serão consoladas. No entanto, quando essas pessoas não conseguem chorar, seu sofrimento é pior. Quem chora, geralmente chora na frente de alguém, mesmo que seja na forma de ausência, alguém de quem se lembra, de quem amou; em todo caso, ele não está em uma solidão complete. Infelizmente, vemos na prisão muitas pessoas que não pode chorar.

A ausência de lágrimas é preocupante?

Muito mais do que o choro! Ou é um sinal de uma anestesia da alma, ou de muita solidão. Há uma dor horrível nos olhos secos. Um de meus pacientes encarcerados apresentou lesões cutâneas em várias partes do corpo por vários mesesque nós não conseguíamos tratar. Mas um dia ela me disse: “Sabe, minha pele ferida é um reflexo da minha alma que está sofrendo. Estas são as lágrimas que não consigo chorar”.

Mas a terceira bem-aventurança não oferece a promessa de consolação no Reino?

Claro, mas o Reino começa no agora! Simeão disse no século X: “Diga adeus à vida eterna quem não a encontrou aqui embaixo”. O que nos é prometido por Jesus não é apenas o consolo na outra vida, mas também a certeza de que a alegria pode surgir do próprio coração daquele que vive o infortúnio. Hoje em dia é difícil pensar que podemosnão podemos estar tanto na tristeza quanto na paz. Mas as lágrimas nos asseguram que sim.

Em seu livro Lágrimas você escreve : “Nossas lágrimas nos escapam e nós não podemos analisá-las completamente”.   

Porque você nunca é completamente transparente consigo mesmo! É um mito, uma lei contemporânea que nos faz acreditar que podemos ser puramente transparentes para nós e para os outros. Devemos aprender a suportar nossa opacidade e nossa finitude: crescer em maturidade, é isso. Choramos muito na Idade Média. Mas as lágrimas secaramcom a modernidade. Por quê? Porque nossa modernidade é movida pelo domínio. Pensamos assim porque vemos que sabemos e porque sabemos que podemos. As lágrimas são um líquido que turva os olhos, mas através delas vemos coisas que não veríamos em uma visão pura da superfície. As lágrimas nos mostram que há em nós o borrão, o opaco, o distorcido, em uma palavra, o humano, mas que também há em nós algo maior do que nós.

Como você distingue as lágrimas “reais” das “lágrimas de crocodilo”?

Uma jovem certa vez respondeu à sua mãe que lhe perguntou por que ela chorava: “Quando eu choro, eu te amo mais”. As verdadeiras lágrimas seriam as que ajudam a amar melhor, as que se doam sem terem sido procuradas. As falsas são aquelas que não têm nada a oferecer, mas querem algo em troca ou buscam apenas dar um show. Podemos ilustrar essa distinção com Jean-Jacques Rousseau e Santo Agostinho. O primeiro conta suas lágrimas, encenando-as e vendo-se chorar, o que não me comove em nada. O segundo chora porque está olhando para Cristo a quem feriu, e espera que suas lágrimas nos levem a ele.

Diga-me como choras e eu te direi quem és!

As lágrimas revelam algo sobre nós, mas também nos despertam! Porque só os vivos choram. E quem chora tem um coração ardente. Sua capacidade de sofrer, até mesmo de simpatizar, está despertando. Chorar é ser tocado por algo que está além de nós e esperar consolo. Não é à toa que os Evangelhos dizem que na manhã da Ressurreição foi a Maria Madalena, a que mais chorou, que foi concedida a maior alegria (Jo 20,11-18).

O que nos diz Maria Madeleina sobre o dom das lágrimas?

Ela combina os papéis da mulher pecadora que chora aos pés de Jesus, de Maria (a irmã de Lázaro) que chora por seu irmão morto, e daquela que está em prantos perto do túmulo vazio. Os monges do deserto assumiram essas três figuras incitando o cristão a chorar lágrimas de penitência, lágrimas de compaixão e lágrimas de desejo por Deus. Maria Madalena também nos ensina que aquele que é dilacerado pelas lágrimas está ao mesmo tempo unido a elas. É a mesma mulher que chora de desespero pela morte de seu Senhor e de alegria ao vê-lo. É a mesma que lamenta seus pecados e derrama lágrimas de gratidão porque foi perdoada. Ela encarna a terceira bem-aventurança! Há em suas lágrimas, como em todas, um poder paradoxal de transformação. Cegando, elas restauram a visão. Da dor, elas também podem se tornar um bálsamo.

Ela chora três vezes, e Jesus também!

Está certo. Três vezes as escrituras mostram que Jesus chora. Sobre Jerusalém e sobre o endurecimento dos corações de seus habitantes. Então, ele chora com a morte de Lázaro as lágrimas tristes e doces de amor feridas pela morte. Naquela hora, Jesus chora pela morte do homem: ele chora por cada homem, mulher, criança que morre.

Finalmente, Jesus chora no Getsêmani

Sim. No Horto das Oliveiras, as lágrimas do Messias cruzam a noite para ascender a Deus que parece ter se escondido. Se Jesus é realmente o Filho de Deus, então é Deus quem chora e implora. Suas lágrimas envolvem todos os apelos de todos os tempos. Eles os usam até o fim dos tempos, até que chegue o novo dia em que, promete o Apocalipse, Deus terá seu lar definitivo com os homens. Então Ele enxugará toda lágrima de nossos olhos!

As lágrimas de Cristo “carregam” cada uma de nossas lágrimas?

Agora, não há mais lágrimas perdidas! Porque o Filho de Deus chorou lágrimas de angústia, desolação e dor, cada homem pode acreditar, de fato, que cada uma de suas lágrimas agora é arrancada como uma pérola fina pelo Filho de Deus. Cada lágrima de um filho do homem é a lágrima do Filho de Deus. O que o filósofo Emmanuel Levinas previu e expressou nesta fórmula deslumbrante: “Nenhuma lágrima deve ser perdida, nenhuma morte deve ser sem ressurreição”.

É nesta descoberta radical que se insere a tradição espiritual que desenvolverá o dom das lágrimas: se Deus chora, é porque as lágrimas são um caminho para Ele, um lugar de encontro com Ele porque Ele é segurança, elas são uma resposta à sua presença. Portanto, elas são mais a acolher do que a racionalizar, como acolhemos um amigo ou um presente de um amigo.

Entrevista por Luc Adrian

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Sofrimento
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