O Papa Francisco deu início a um audacioso projeto de consulta a toda a comunidade católica para a realização da próxima Assembleia do Sínodo dos Bispos. Valorizou particularmente três palavras: encontrar, escutar e discernir – mas para aprofundar essas palavras é melhor ler a própria homilia do Papa. Aqui, gostaria de refletir sobre o catastrofismo, o voluntarismo e a politização que frequentemente acompanham essa discussão. E, desde já, retomo a resposta da pergunta do título: o que salva o cristianismo, em todos os tempos e situações, é sempre a graça de Deus – ainda que se valha de nós para a sua realização.
É fato que os dados demográficos indicam uma aparente derrocada do cristianismo no continente em que se desenvolveu, a Europa. No Brasil, a redução do número de católicos é, em grande parte, compensada pelo aumento de fiéis das Igrejas neopentecostais, de tal modo que a proporção de cristãos na população não diminui muito. Nos países europeus, contudo, a redução também afeta as denominações protestantes, de modo que há um aumento da proporção dos que se declaram ateus ou agnósticos. Isso aponta para um dado interessante: muitas das mudanças que são continuamente pedidas à Igreja Católica, sob a alegação de serem necessárias para sua sobrevivência, como o casamento dos pastores ou a formação de um clero feminino, já acontecem em muitas denominações protestantes, sem que isso implique necessariamente numa maior resistência ao processo de secularização...
Esses dados demográficos são muito significativos. Têm muito a ver com o processo de cancelamento cultural e de negação dos valores cristãos que acontece na maioria dos países de tradição cristã. Mas escondem um dado fundamental: mostram a aparência externa, não o coração do ser humano. Baseiam-se normalmente em enquetes onde se pergunta qual a confissão religiosa da pessoa, se participa ou não de alguma celebração semanal. Mas quem pode garantir que a religião professada corresponde à fé vivida no coração da pessoa? Mesmo a participação ao culto dominical, particularmente no passado, nas sociedades predominantemente católicas, para muitos era apenas uma obrigação social...
O mundo está cheio de “cristãos de fachada”. Isso não deveria nos escandalizar, nem deveríamos condenar essas pessoas. O cristianismo por tradição, em oposição àquele por convicção, é a consequência de um erro histórico das comunidades cristãs: acreditar que o poder social e institucional poderia converter as pessoas, que a crença religiosa poderia ser negociada junto com outros sinais de status social e até determinar quais direitos seriam reconhecidos.
De certa forma, as dificuldades que vivemos hoje em ambientes com uma mentalidade até anticristã são uma graça que nos dá a possibilidade de aderir a Cristo de uma forma mais genuína, motivados por um encontro mais verdadeiro e não por convenções sociais. Nesse sentido, só Deus, que conhece o nosso coração melhor do que nós mesmos, pode dizer se a redução demográfica da porcentagem de cristãos declarados corresponde a uma redução da porcentagem de corações animados pela fé.
Mesmo essa reflexão, quando nos preocupamos com o aumento ou redução do número de convertidos a Cristo, ainda pode ser um sinal do “homem velho” dentro de nós, uma condição em que ainda pensamos nossa fé em termos de aceitação social e conformidade das normas sociais às nossas convicções. São Paulo, em sua Carta ao Filipenses, mostra em palavras comoventes como a graça de viver e anunciar a companhia de Cristo supera todas as tribulações que enfrentamos na vida social (cf. Fl 1, 1-30; Fl 3, 8-16).
Temos frequentemente uma tendência voluntarista de pedir mudanças estruturais para resolver as situações. No fundo, acreditamos que os problemas são consequência da conivência ou da má vontade das autoridades. Bastaria que elas mudassem as estruturas para eles se solucionassem. Mudanças estruturais são fundamentais para que os problemas sejam resolvidos, mas elas não são uma solução e sim o resultado de uma solução já em ato. Os problemas da vida em sociedade, sejam políticos, econômicos ou eclesiais, são muito complexos e não se resolvem de forma simplista. Pessoas bem-intencionadas e comprometidas são fundamentais, mas nada garante que elas saberão tomar as melhores decisões diante das dificuldades. O Papa Francisco insiste, em várias ocasiões, que o importante é iniciar processos, pois é neles que a mudança acontece. As transformações que realmente trazem a novidade desejada não se dão por decisões voluntaristas, mas dentro de processos.
Os relatos históricos, algumas vezes, nos fazem ter a impressão de que o Concílio Vaticano II, por exemplo, se deu por uma decisão intempestiva de São João XXIII e que tudo mudou a partir dali. Aliás, pensamos que tudo deveria ter mudado e que as mudanças que não ocorreram se devem à vontade de algumas autoridades reacionárias. Mas, pelo contrário, o Concílio é o fruto de um largo processo de reflexão e amadurecimento da comunidade católica, o século XX contou com uma infinidade de grandes teólogos e pensadores que foram repensando a presença da Igreja na atualidade. E esse processo ainda não terminou, esse convite do Papa Francisco não é “o retorno” do espírito do Concílio, mas sim mais uma etapa da longa caminhada, cheia de avanços e tropeços, de reproposição da Igreja ao mundo de hoje.
Essa visão voluntarista das mudanças estruturais vem acompanhada de uma série de posicionamentos políticos em relação à vida da Igreja. Se o problema é uma estrutura inadequada, que não muda em função da vontade de algumas autoridades, a solução é uma luta política que afaste essas pessoas e coloque outras, que pensam como nós, no poder. Essa é justamente a porta pela qual o diabo, aquele que divide e afasta de Deus, entra no interior da Igreja e do coração daqueles que a amam e gostariam de ajudá-la a melhorar. Passamos a imaginar que é o poder humano e não a graça divina que faz as coisas melhorarem na Igreja.
No início dessa consulta do Sínodo, que representa uma nova etapa no longo processo de reproposição da Igreja ao mundo de hoje, não é demais recordar que a primeira mudança que ocorre na Igreja é aquela que acontece em nosso coração. Quanto mais nos convertemos ao amor de Cristo, quanto mais propomos o essencial a nossos irmãos, mais felizes somos e melhor será a Igreja. Além dos inúmeros textos que estão saindo com relação ao próprio Sínodo, alguns já citados no início desse artigo, vale a pena rever o “sonho eclesial” de Francisco para a “Querida Amazônia” (QA 61ss).
É pedagógico, para todos nós, ver como o Papa retoma os desafios para a presença eclesial naquela região, apontados numa consulta popular que lembra essa atual do Sínodo, mostrando como eles podem ser superados com uma fidelidade maior ao anúncio do Evangelho. Francisco não desvincula o espiritual do social, não deixa de constatar a necessidade de novas estruturas para novos tempos, mas deixa claro como a pessoa convertida a Cristo é o verdadeiro instrumento de Deus para a construção da sua Igreja.