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Afeganistão: grávida implora que médicos a matem com seu bebê prestes a nascer

mulher desesperada
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Francisco Vêneto - publicado em 10/12/21
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"Não sei como consigo continuar viva! Como é que eu posso dar à luz outro ser humano?"

A médica obstetra Nuri presenciou uma cena estarrecedora no seu Afeganistão natal e depois a testemunhou a repórteres da rede britânica BBC. Nuri trabalha no centro desse país em frangalhos, agora tomado pelos extremistas islâmicos do Talibã, e estava pronta para fazer uma cesárea quando a jovem gestante, desesperada e aos prantos, suplicou que os médicos a matassem junto com o bebê que estava prestes a dar à luz. Ela gritava:

"Não sei como consigo continuar viva! Como é que eu posso dar à luz outro ser humano?"

Na mesma ala superlotada do hospital em que Nuri trabalha, há outras gestantes tão desnutridas que sequer terão leite materno para alimentar seus bebês. Elas se espremem contra paredes sujas de sangue ou deitadas em lençóis que não são lavados há meses, já que a maior parte dos faxineiros se cansou de trabalhar sem receber pagamento e foi embora do hospital para tentar sobreviver de alguma forma num país absolutamente falido.

Como a maioria das clínicas privadas não teve alternativa além de fechar as portas, a maternidade desse hospital está tão cheia que várias mulheres dividem o mesmo leito. O hospital está tendo que atender o triplo das mulheres que atendia antes, com uma fração dos recursos que, mesmo antes, já não eram abundantes.

Nuri declarou à equipe da BBC:

"A maternidade é uma das alas mais felizes de qualquer hospital, mas não é mais no Afeganistão. Aqui é um inferno".

Em setembro, no espaço de tempo de apenas 15 dias, ela presenciou a morte de cinco recém-nascidos - todos eles morreram de fome.

Sob os talibãs, perspectivas tenebrosas para o Afeganistão

A ruína afegã se concretizou em agosto com a retomada do poder pelos fanáticos do bando Talibã, debaixo do nariz de uma coalizão de forças norte-americanas e europeias e do seu estrondoso fracasso em garantir o mínimo de segurança após quase 20 anos de ocupação. O país tentava se recuperar de uma seca severa e das décadas de conflito, mas a vitória talibã lançou às trevas as perspectivas de progresso dos afegãos.

Em 30 de outubro, o Ministério da Saúde do Afeganistão, já comandado pelos talibãs, enviou uma carta aos profissionais das áreas médicas determinando que continuassem a trabalhar sem remuneração até que "as questões orçamentárias" fossem resolvidas.

Mais de 2.300 unidades de saúde já foram fechadas no Afeganistão. Os médicos que tentam trabalhar nas regiões mais remotas relatam a carência até dos medicamentos mais básicos. Mesmo em Cabul, um hospital infantil de referência tem de lidar agora com as consequências de um dos piores surtos de fome no país. A ONU estima, de fato, que, durante o atual inverno do hemisfério Norte, 14 milhões de crianças afegãs sofrerão níveis agudos de desnutrição.

O diretor do hospital, identificado pela BBC apenas como doutor Siddiqi, declarou que, desde setembro, quando as verbas foram cortadas, morrem por semana cerca de 4 crianças menores de 10 anos por causa da desnutrição e das doenças decorrentes desse quadro. Ele acrescenta que muitas crianças de até 5 anos de idade estão chegando ao hospital "tarde demais para serem salvas".

Terror, fome, doença, frio: o inferno do Afeganistão

Como se não bastasse a fome, os que sobrevivem se deparam com a falta de muitos outros recursos para continuarem vivos: o próprio frio intenso pode terminar de matá-los, já que não há combustível para o aquecimento das instalações. O doutor orientou suas equipes a trazerem galhos secos para alimentar um fogão a lenha.

As quedas de energia tornam o pesadelo ainda pior, matando bebês prematuros nas incubadoras que param de funcionar por falta de eletricidade. A doutora Nuri não consegue descrever a tristeza de "vê-los morrendo na frente dos seus olhos".

As perspectivas mais imediatas são gravíssimas. Com o inverno, o transporte de mercadorias vindas de países vizinhos, como o Paquistão e a Índia, se torna ainda mais restrito, piorando o cenário já ruim de desabastecimento.

A doutora Nuri conta que a sua própria família está tentando a duras penas sobreviver, pois ela mesma já teve de gastar quase todas as suas economias e, atualmente, não está mais sendo remunerada. Quando vê mais uma mulher indo embora do hospital com seu bebê no colo, fica pensando em como elas vão fazer para conseguir comida.

"Não sei por que ainda venho trabalhar. Eu me faço esta pergunta todas as manhãs. Talvez seja porque eu ainda tenho alguma esperança num futuro melhor".