Duas situações chamaram minha atenção nesse período do Advento.
Recebi, como em anos anteriores, uma suposta mensagem de Natal do Papa Francisco, no qual ele teria dito que “Natal é você, quando se dispõe, todos os dias, a renascer e deixar que Deus penetre em sua alma”. O texto, que circula há anos nessa época natalina, no conjunto, é até simpático, porém apresenta dois problemas graves. O primeiro é que não é de autoria do Papa Francisco, como foi demostrado por sites católicos e até de verificação de fake news. O segundo problema é que a mensagem é escandalosamente anticristã: diz que o Natal está em nós, quando nos tornamos bondosos e amamos ao próximo, enquanto a mensagem de Natal é que Deus – aquele que é o totalmente Outro – veio até nós, porque Ele é bom e nos ama, não porque nós temos os sentimentos adequados ou fazemos as coisas certas.
Nos escandalizamos com certas representações de episódios evangélicos, ditas artísticas ou humorísticas, frequentes nos períodos natalinos, que distorcem e parecem ridicularizar a mensagem cristã. Contudo, essas iniciativas – na maior parte dos casos – não querem tripudiar os símbolos da fé. Querem, isso sim, provocar e zombar de pessoas que seguem os valores tradicionais do cristianismo. São uma forma de acusar os cristãos de não serem fiéis ao maior valor do cristianismo, que é a caridade, de serem hipócritas e autoritários. Quando apresentam um Cristo gay ou uma Nossa Senhora trans, não querem ridicularizar nem a Jesus, nem a sua Mãe. Pelo contrário, querem dizer “se eles estivessem aqui, estariam conosco e não com vocês”.
Nos dois casos, da mensagem falsa e dos símbolos deturpados, não existe propriamente uma repulsa ao cristianismo, mas sim uma disputa pelo sentido da mensagem cristã. Reconhece-se que a mensagem cristã é boa, mas procura-se uma reapropriação de seu sentido, de modo que não é mais aquela da grande Tradição, mas sim uma construção arbitrária, que pode ser montada seguindo a instintividade ou o interesse político-cultural do autor.
Mesmo as imagens simpáticas podem não ser justas
A primeira grande deturpação do sentido do Natal já se tornou tradicional entre nós. É a clássica figura do Papai Noel. A exploração consumista do “bom velhinho” esconde um outro problema maior. Ele é, originalmente, um santo (São Nicolau) benfeitor das crianças e dos pobres. Seus presentes deveriam servir para que os pequenos entendessem a gratuidade do amor de Deus e comemorassem alegres o grande presente que é Cristo. Mas acabou se tornando uma distração que afasta as crianças do sentido do Natal... É como se a dádiva não tivesse origem ou razão de ser – e ainda o instrumentalizamos para “chantagear” as crianças, dizendo que não receberão presentes se não se comportarem bem, exatamente o inverso do que São Paulo diz, ao afirmar que Cristo morreu por nós enquanto ainda éramos pecadores (Ro 5, 8).
A mensagem anticristã atribuída ao Papa, por ter uma formulação bondosa, não é combatida pela comunidade cristã – chega até a ser divulgada por nós mesmos, com a melhor das intenções. A figura do Papai Noel recebe tratamentos diferentes entre nossas famílias, mas a maior parte de nós se rende ao encanto que desperta nas crianças (e, nesse caso, é bom esclarecer que o problema não é a criança pequena acreditar ou não em Papai Noel, mas sim ela não saber que o velhinho presenteador é um sinal da bondade de Deus e seus presentes, uma analogia ao dom de Deus a nós). No caso dos símbolos considerados ofensivos, as reações de repulsa são mais generalizadas – ainda que frequentemente sirvam mais para promover seus autores do que para desestimular agressões.
Em todas essas situações, contudo, o que está em jogo é o sentido do Natal e o mais importante é reconduzir as iniciativas para seu justo significado, fazendo com que se tornem uma ocasião de encontro e conversão, tanto para nós quanto para os outros. Se não temos esse cuidado, supondo fazer tudo certo, podemos estar colaborando para construir uma sociedade mais distante dos verdadeiros valores cristãos.
Nosso compromisso com o verdadeiro sentido do Natal
O coração humano anseia por um amor e uma ternura capazes de acolhê-lo, ampará-lo e preenchê-lo de beleza. Esse desejo universal orienta todas as nossas ações, mesmo que não nos demos conta disso, mesmo que cheguemos até a negar essa necessidade maior. A mentalidade “do mundo” tende a imaginar que, se Deus viesse ao mundo, teria um aspecto poderoso e temível. A sabedoria de Deus, que nos conhece melhor do que nós mesmos, contudo, sabe que um recém-nascido indefeso corresponde muito mais a essa nossa aspiração por afeto e carinho. Por isso, para toda a humanidade, em todas as épocas e lugares, nenhum anúncio é mais cativante do que o do Natal do Menino Jesus.
Ao longo do século XX, as ideologias secularistas não conseguiram diminuir esse encanto. Na prática, o que vemos é uma grande tentativa de ressignificá-lo, torná-lo apenas uma grande comemoração da bondade humana, um momento de catarse numa vida de sofrimento, um tempo de paz em meio a uma guerra infindável. Uma coisa bonita, mas destinada a se extinguir na manhã de 26 de dezembro, quando a vida volta à normalidade, com suas incertezas, raivas e desamores.
O verdadeiro significado do Natal é o encontro com um Outro que vem, cheio de amor e ternura, não apenas para um momento celebrativo, mas para ficar conosco por todo o sempre – algo que é impossível nessa ilusão benevolente de um Natal sem Cristo. Não precisamos defender a Jesus dos que aparentemente querem desfigurar o sentido do Natal. Deus, seguindo Seu próprio desígnio, se defende por si mesmo. Contudo, precisamos sempre recuperar em nós e anunciar a nossos irmãos o dom do amor de Deus, que não é nada óbvio. Nosso olhar é diferente, sem dúvida, quando nos damos conta que aqueles que estão diante de nós, sejam muito amados por nós ou nos enfureçam e façam sofrer, têm em seu coração essa mesma expectativa de encontro com um Deus de amor e ternura.
Que cada Natal seja, para todos nós, um momento de crescermos nessa consciência, que possamos sempre mais anunciar esse encontro para todos – e começarmos ou avançarmos num grande caminho de vida compartilhada e construção de um mundo melhor.