Nesta Semana Santa de 2023, circulou entre meus amigos, em nossas redes sociais, essa passagem de Dom Luigi Giussani, sacerdote italiano fundador do movimento Comunhão e Libertação: “Se alguém entrar na Quinta-feira Santa, Sexta-feira Santa, Sábado Santo, Páscoa, nestes quatro dias, sem olhar para o rosto de Cristo e nada mais, mas com a preocupação de seus pecados, da sua perfeição, de como deve meditar; acabará cansado, retomando seus dias como antes. Pelo contrário, olhar para o rosto de Cristo muda. Mas, para que Ele nos mude, é preciso encará-lo verdadeiramente, desejando o bem, desejando a Verdade: ‘Tudo sou capaz, Senhor, se estou contigo, tu és a minha força’. É um Tu que domina e não leis que devem ser respeitadas” (É possível viver assim? São Paulo: Cia Ilimitada, 2008).
Minha esposa e eu ficamos particularmente impactados pela comparação dessa passagem com algumas exortações que costumamos ouvir para que nos esforcemos para participar das celebrações da Semana Santa ou para sermos, a partir dessa Páscoa, mais comprometidos com as boas obras e com a luta por uma sociedade mais justa. As duas exortações, para a participação litúrgica e para o compromisso com o bem dos irmãos, são justíssimas, não estamos fazendo aqui nenhuma objeção a elas. Porém, a passagem de Dom Giussani abre uma outra janela, descortina um outro modo de olhar o mundo e viver a fé.
As práticas ascéticas e a experiência mística
Nesse período, em função do décimo aniversário do pontificado de Francisco, li uma declaração do Papa que talvez ajude a entender melhor o que gostaria de mostrar. Numa entrevista ao padre jesuíta Antonio Spadaro, ele comenta que existe, na Companhia de Jesus, uma corrente que sublinha o ascetismo, o silêncio e a penitência, mas que ele, Bergoglio, se identifica mais com uma outra, mais mística. Ora, podemos nos perguntar, ascetismo e mística não estão intimamente ligados? Uma experiência mística não pressupõe uma prática ascética?
De fato, as duas coisas estão intimamente ligadas, como a carroça e os bois. Mas fica muito mais difícil avançar se os bois, colocados atrás, “empurrarem” a carroça, ao invés de irem na frente, “puxando-a”. Existe uma deformação do ascetismo cristão que imagina que é a fidelidade às suas práticas que produz a experiência mística. Isso pode ser verdade num ascetismo estoico, de caráter disfarçadamente ateu, ou em algumas outras religiões. Mas, no cristianismo, é a própria experiência mística do encontro com Cristo que gera o desejo das práticas ascéticas, que se tornam respostas cheias de gratidão e de alegria Àquele que tanto nos amou primeiro.
O teólogo alemão Karl Rahner, no final do século passado, numa passagem famosa, declarou que os cristãos seriam “místicos” ou seriam “nada”. Rahner não tinha dúvidas sobre o significado de suas palavras: o cristianismo só pode sobreviver enquanto encontro e relação de amor pessoal entre Cristo e o fiel. A afirmação, contudo, se empobrece quando é interpretada simplesmente como condenação ao moralismo e ao formalismo que invadiram muitas vezes a mentalidade cristã moderna. Sem dúvida, a mística supera essa mentalidade redutiva – mas essa superação é uma decorrência da primazia do amor. Quem quer interpretar a mística apenas como negação do formalismo e do moralismo não avança, pois sua riqueza está no amor. E isso não é fácil de entender numa sociedade como a nossa, onde se fala muito no amor, mas se tem muita dificuldade em vivê-lo realmente.
A contemplação do Cristo sofredor
Fomos acostumados a uma cultura imagética que valoriza as representações do Cristo sofredor e dos santos em êxtases supostamente místicos, mas que a nossos olhos contemporâneos parecem mais maneirismos que estados contemplativos. Essas imagens são acompanhadas por práticas devocionais onde predomina a subjetividade dos fiéis e não a objetividade do amor de Deus. Frequentemente, não são nem consideradas práticas ascéticas, pois estão mais centradas na exploração das emoções da pessoa do que num real cultivo da contemplação e da oração.
A experiência mística cristã é o encontro entre duas subjetividades – a do fiel e a de Cristo, que se torna presente de forma misteriosa, mas real. Como toda experiência afetiva, é moldada pela sensibilidade e pela emotividade de cada um. Existem os mais devocionais, aos quais agradam as imagens e o ambiente barroco do catolicismo da Contrarreforma, existem os mais contemplativos, que preferem o estilo dos ícones orientais e a austeridade das primeiras basílicas cristãs. Cristo não deixa de ir ao encontro das pessoas, sejam quais forem seus temperamentos e suas preferências.
Contudo, nesse tempo pascal, pode ser perigosa uma contemplação do Cristo sofredor e de suas dores como catarse para nossos próprios sofrimentos ou motivação para o empenho moral – e não como ocasião para perceber o Seu amor por nós. Uma “estética do sofrimento” afasta frequentemente as pessoas da Igreja. Corresponde, muitas vezes, a um certo moralismo pelagiano, um desejo até arrogante de “estar à altura” do sacrifício de Cristo por nós (sobre esse tema, vale a pena ler Gaudete et Exsultate, do Papa Francisco, GE 47ss).
A justa contemplação mística do amor de Cristo por nós, ao invés disso, cria uma alegre gratidão, um desejo humilde de corresponder ao amor recebido. Não omite os sofrimentos de Cristo ou mesmo os nossos, mas permite que a misericórdia a tudo cubra e até mesmo as dores se tornem sinais de amor e beleza. Então, a participação na liturgia se torna verdadeiramente a bela celebração do Amor e o compromisso com os irmãos, particularmente com os que mais sofrem, se torna aquela conformação natural do coração do amante ao coração do Amado... E compreendemos melhor porque “seu fardo é leve e seu jugo, suave” (Mt 11, 28-30).