Aprender a olhar a realidade com os olhos de Deus
Partimos seguindo as pegadas de duas testemunhas surpreendentes: São João Batista Vianney, conhecido como o "Cura d’Ars" (o padre de Ars) (+1859) e um monge beneditino camaldolense dos nossos tempos, Don Benedetto Calati (+2000).
Cura D’Ars viveu na França durante a revolução francesa entre os séculos XVIII - XIX como pároco de um pequeno vilarejo habitado por uns poucos camponeses. Era uma pessoa muito humilde e de pouca instrução, mas que se torna uma lâmpada vivente de adoração, e sua igrejinha, uma irradiação do amor de Deus para todos. Dizia sobre o seu relacionamento com Jesus: Eu olho para Ele e Ele olha para mim!
Don Benedetto foi monge e teólogo bem conceituado, pai espiritual de muitos monges e leigos. No final de sua vida de eremita afirmava aos que lhe perguntavam: Como é para você a experiência de oração depois de tantos anos de vida monástica e de estudo? Ele respondia: A oração de um pobre velho... De vez em quando um Pai Nosso...Uma Ave Maria...um Gloria ao Pai... e escuto música!
Dois mundos aparentemente distantes, mas que peregrinaram rumo à mesma meta: partiram do conhecimento de Deus pelo intelecto e chegaram à relação de amor com Ele; uma experiência que vai além da razão e vive em unidade com o amado. São duas testemunhas da passagem da complexidade da vida à sua unificação no essencial:
- Deixar-se olhar, e responder olhando para Jesus!
- Escutar, balbuciar, como uma criança faz diante do Pai.
Na subida até Deus pode-se chegar a um ponto em que a razão já não enxerga mais. Porém, na noite do intelecto, o amor é capaz de se estender muito além da razão, vê mais, e entra mais profundamente no mistério de Deus. É o mistério da cruz, na qual resplandece a potência e a sabedoria de Deus, loucura para os homens. A vida cristã é essencialmente “relação reciproca” com Deus: ser olhados e amados... olhar e amar... (cf Ef 1, 1-14).
A vida cristã é um processo de unificação progressiva da pessoa a partir do seu relacionamento com o Senhor, e de simplificação verso o essencial, fruto e alimento desta relação especial. A oração é reconduzida à relação filial com o Pai pela ação do Espirito, doado aos simples de coração, como diz Jesus nas Escrituras:
*Eu te louvo, ó Pai, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos (Lc 10,21-22).
*O Espirito socorre nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espirito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos (Rm 8, 26-27)
Há dois filmes relativamente recentes que relatam a vida de duas comunidades de vida contemplativa. Ambos tocantes na linguagem e eficazes ao transmitir uma mensagem comum: a primazia absoluta de Deus na vida, e a transformação radical da existência que a experiência do encontro com Deus determina na vida desses monges: O grande silêncio (Diretor: Philip Groening - 2005) e Homens e Deuses (Diretor: Xavier Beauvois - 2010). Representam dois modos de viver a dimensão contemplativa na vida monástica. Um deles, conta a vida quotidiana de monges cartuxos que vivem solitários na tranquilidade das montanhas da França, em absoluto silêncio, e são a expressão de uma tradição milenar que permaneceu imutável ao longo dos séculos. O outro relata as vicissitudes de um mosteiro de monges trapistas, que vive no meio do fogo da guerra e do islamismo na Argélia na década de 1990.
Esses exemplos mostram que a dimensão contemplativa pode ser vivida de muitas formas.
O que têm em comum estes modelos variados de vida contemplativa?
Eles têm em comum a relação especial com o Senhor, como única fonte e meta, e uma mesma exigência radical: permanecer em contato com a fonte e olhar para a meta, cultivando a mesma irradiação de amor, a serviço dos irmãos.
Da relação de intimidade com o Espírito do Senhor nasce aquela luz interior que “abre os olhos” de quem acredita, lhe dá a capacidade de perceber a verdadeira profundidade de si mesmo, das coisas, e de se deixar surpreender pelas novidades de Deus. Como aconteceu ao cego de nascença curado por Jesus (cf Jo 9, 1-7).
Na pessoa que cultiva esta relação de intimidade com Deus se desenvolve um olhar que penetra na profundidade da realidade. Se torna um olhar profético e que determina um agir alternativo: Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito (1Cor 6, 17). É o reino obscuro e fascinante da liberdade espiritual, de quem vive peregrinando na fé, e não se detém nos condicionamentos aparentes e meramente humanos. Diz também São Gregório Magno: Nós estamos unidos ao Senhor quando recebemos a abundante graça do Espírito Santo. Formamos com ele um só Espírito, quando estamos em sintonia com ele, na maneira de pensar, de falar e de agir (Lib. 1Re, IV, 179-180; CCL CXLIV, 393-394).
Permanecer no essencial
A dimensão contemplativa, em sua tríplice articulação, é constitutiva de toda experiência espiritual cristã: experiência de intimidade com Deus, cultivo constante desta relação que transforma a vida conformando-a progressivamente ao Senhor, e irradiação desta nova maneira de ser e de agir de acordo com a vocação de cada um. É fruto da presença e ação misteriosa do Espirito derramado de Cristo crucificado e ressuscitado em nós. O dom do Espirito nos gera à vida divina e, pela sua ação, nos transforma aos poucos à imagem de Cristo, em cujo rosto resplandece a imagem do Pai. E, enquanto estamos progredindo no processo de conformação a Cristo, voltamos, de fato, ao projeto original, segundo o qual Deus nos criou à sua própria imagem e semelhança, chamando o homem e a mulher a partilharem de sua própria vida e a serem quase reflexo seu no mundo.
A dimensão contemplativa da existência cristã é alimentada em nós graças ao batismo que nos mergulha na páscoa de Cristo (caminho contínuo de morte - ressurreição), pela relação cotidiana com sua Palavra viva, acolhida no segredo da consciência e na meditação da Sagrada Escritura, pela graça de se alimentar de sua carne e seu sangue, e pela pratica do amor nas relações. Esse processo dinâmico nos transmite a energia da vida eterna e nos faz permanecer em Cristo e viver por Ele e para Ele.
Em linguagem leiga a palavra “contemplação” significa um estado de bem estar psicológico, procurado e produzido pela pessoa. Mesmo no âmbito eclesiástico, evoca habitualmente algo de extraordinário, uma experiência excecional de contato com o divino, que acompanha o cume da vida espiritual. E, enquanto tal, é considerada como uma experiência que toca poucas pessoas eleitas e se concentra na sua vida de oração e nas práticas ascéticas que a acompanham. Nessa concepção, a vida contemplativa, é reduzida a um âmbito muito restrito.
Este modo de conceber a vida contemplativa, além de reduzir sua dimensão a algo de excecional e de limitado a algumas pessoas, realiza uma separação, colocando em contraposição, a dimensão espiritual, presente em toda pessoa humana, e o conjunto das expressões da sua vida. Como sair desta divisão aparentemente insuperável, mas sobretudo, não condizente com a realidade?
Novas criaturas em Cristo
É preciso olhar para o fundamento “objetivo e dinâmico” da dimensão contemplativa, que caracteriza não somente a vida consagrada e dos monges e monjas, mas toda a vida cristã. Segundo os padres da igreja, a vida de Adão e Eva, era atraída para Deus e orientada para a sua constante procura, na harmonia global das relações paradisíacas. Essa constante procura constituía a atitude fundamental ou dimensão contemplativa do casal original, e continua sendo a estrutura fundamental da pessoa humana. Assim, a dimensão contemplativa constitui uma capacidade e aspiração inatas, que permanecem no fundo do coração de cada ser humano. A promessa divina da sua recuperação a mantêm viva (cf Gn 3,17), e reaparece continuamente como exigência inalienável, mesmo numa sociedade secularizada e pós-moderna.
Em Cristo, novo Adão, tal capacidade reencontra seu resgate pleno a partir da sua relação renovada e filial com Deus. Esta “tenção inata para Deus” faz o ser humano viver na história, não como numa prisão da qual fugir, mas como um lugar em que Deus atua e se revela, e como o jardim entregue à operosidade responsável do ser humano, agora laboriosa e sofrida, mas sustentada por Deus e partilhada com seus companheiros de aventura.
Esta visão teológica da história e da pessoa permite superar a divisão entre a história humana e a história de Deus, fazendo da relação recíproca uma história de salvação, guiada por Deus. Permite superar a divisão entre o chamado que Deus faz ao ser humano para exercitar com responsabilidade sua obra no mundo, e a dimensão espiritual e contemplativa da sua existência. Permite superar a contraposição, ainda presente em certos ambientes “espirituais” mesmo atuais, entre corpo e espirito.
Essa contraposição, não pertence ao patrimônio da revelação bíblica. Ela é, antes, herança de uma concepção antropológica, com raízes na filosofia neoplatônica, que considera o mundo material como decadência do espirito e sua prisão, da qual é preciso se libertar o máximo possível. À primeira vista, esta visão das coisas pareceria favorecer a primazia e a liberdade do espírito em relação ao mundo material e às paixões desordenadas da alma. Na visão bíblica e cristã, porém, a pessoa na sua totalidade e integridade é reconduzia pela ação do Espírito, a pensar, julgar e agir, segundo os impulsos profundos do Espírito.
Sob a ação do Espirito de Cristo, a inteira existência do discípulo se torna a existência de quem foi “ressuscitado em Cristo”, morto ao ser humano velho e renascido como ser humano novo (cf Ef 2,15; 2 Cor 5,17; Rm 8, 5-11; Gl 5, 16 -25). São Bento e o monaquismo ocidental por ele inspirado, exprime muito bem a recomposição da unidade da vida do monge em Cristo, com duas afirmações sintéticas: Nada antepor ao amor de Cristo (Regra de São Bento 4,21; 72,11) – Ora et labora – Rezar e trabalhar.
Essa ação do Espírito que recria a unidade é o fundamento objetivo da dimensão contemplativa da vida, isto é, da existência orientada conscientemente e por amor a Deus. Mas fundamenta também a capacidade e a alegria de o reconhecer como fonte da vida, seu centro de unificação, e horizonte ideal para o qual a vida se desenvolve rumo à sua meta.
A tensão ou dimensão contemplativa está presente em toda experiência religiosa autêntica, não somente cristã. Ainda mais, ela está presente em toda pessoa que busca sinceramente o sentido da vida, embora às vezes de maneira confusa, como acontece em muitas pessoas nas nossas sociedades secularizadas.
Passos para viver a dimensão contemplativa na vida cristã
Hoje a dimensão contemplativa pode, e deveria, tornar-se prioridade novamente – em nossa vida pessoal e de nossas comunidades; sendo partilhada e promovida no novo contexto cultural e religioso do nosso tempo. Homens e mulheres sedentos de Deus e do sentido da vida batem às portas das nossas comunidades monásticas, ou esperam que alguém vá ao encontro deles nas periferias existenciais onde tentam sobreviver, numa busca sofrida por uma experiência mais profunda de Deus ou do sentido da vida. É o desafio da nova evangelização, evangelização esta que só pode ocorrer através do testemunho de alguém.
Já não é suficiente salvaguardar e conservar o que existe. Trata-se de focalizar o essencial: as raízes da experiência de fé. Revela-se extremamente útil a afirmação atribuída a Karl Rahner: O homem do século XXI será um místico, ou não será religioso. A tensão contemplativa da vida é uma “potencialidade”. Certo, é potencialidade recebida como dom de Deus. Mas, de nossa parte, necessita de condições adequadas, interiores e exteriores, para se desenvolver e dar seus frutos. Éfata! - Abre-te! foi proclamado sobre nós, como cura da surdez interior e convite para abrir a vida ao mestre interior que é o Espírito. Santo Agostinho diz que será Mestre Interior somente aquele que é o mestre do homem interior e que em nosso íntimo mostra-nos a verdade do que nos é ensinado (Carta 266).
Toda potencialidade precisa de condições favoráveis para se desenvolver. Os passos deste caminho podem ser delineados:
*Permanecer um tempo em silêncio é o primeiro passo. Não se trata simplesmente de se abster de falar ou da ausência de ruídos, mas sim de procurar viver o silêncio interior, aquela dimensão que nos restitui a nós mesmos, nos coloca diante do essencial. É aquele silêncio que encontra o seu próprio âmbito vital no coração. Em nosso coração se agitam sonhos, aspirações e tensões centradas em nós mesmos. Precisamos todos os dias cultivar a relação e escolher de nos deixar guiar pelo Espírito do Senhor e sua Palavra viva (cf. São Romualdo, Pequena regra de ouro - Rodulfo II, Prior do Sacro Eremitério de Camaldoli - ano 1180 - Consuetudo Camaldulensis, 1-3; 9.- A. Grun, O poder do silencio, Vozes 2010 – Simone di Taibuteh, Abitare la solitudine; Bose 2004).
O que habita/ocupa a nossa casa e, sobretudo, a cela interior do nosso coração? Quantos concorrentes!
*Aprender a escutar. O silêncio não é fim em si mesmo, mas um meio para escutar a voz do Senhor que vem a nós através inúmeros canais: a partir do segredo da consciência, dos acontecimentos, da sua Palavra Viva, lida, meditada, rezada, contemplada na Lectio Divina (meditação da Palavra divina através da leitura quotidiana da Sagrada Escritura) para ser interiorizada e transformada em vida nova.
Que prioridade e fidelidade tem a Lectio Divina no ritmo efetivo dos nossos dias?
*A participação na liturgia eucarística e a eventual celebração de uma ou outra parte da Liturgia das Horas são outros momentos fundamentais para viver a relação com o Senhor e aprender a escutar o Espírito (cf J. Castellano, Liturgia e Vida Espiritual; Paulinas 2008).
Conseguimos integrar no ritmo da nossa vida a Liturgia Eucarística e a Liturgia das Horas com nossas atividades quotidianas?
Como nos relacionamos com os acontecimentos quotidianos: simples informação ou procura de uma leitura iluminada e espiritualmente crítica?
Pensar como Cristo, olhar com os olhos misericordiosos do Pai, atuar em sintonia com os impulsos interiores do Espirito, eis o âmago da vida cristã. Esta é vida autenticamente “espiritual”. Esta é vida autenticamente “contemplativa”, enquanto animada e orientada pelo Espírito como fonte e como meta para Deus! É o Espirito de Cristo que nos dá a capacidade de olhar e avaliar as coisas e as situações segundo a sua unidade original, e não segundo as aparências ou os critérios humanos. A pessoa espiritual e contemplativa olha para a profundidade e a verdade das coisas, segundo Deus.
Quem tem esta “inteligência” do mistério de Deus atuante na história, graças ao “sentir com Cristo e como Cristo”, descobre na cruz a sabedoria e a força autêntica de Deus. Tendo seu olhar fixo em Jesus, que o precede no caminho da fé e da esperança rumo à plenitude do reino de Deus (cf. Hb 12,1-2), o contemplativo, solidário com seu tempo, perscruta e indica o sentido autêntico da história e a direção que nos dá esperança, iluminada pela luz que vem de Cristo. Como conseguiam viver o santo camponês Cura de Ars e o monge Don Benedetto!