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O que é de César? O que é de Deus?

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 17/12/23
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Em nossos tempos, César é o Estado. Gostemos ou não, dele emana toda a ordem social instituída

“A César o que é de César, a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17). Lembrei-me da frase de Jesus ao ler que o novo procurador-geral da República, Paulo Gonet declarou: “não tomo a Constituição como Bíblia, nem a Bíblia como Constituição”. As duas frases remetem a questões significativas para um justo entendimento da laicidade do Estado e o papel dos cristãos na política. A primeira, título deste artigo, é distinguir o que é de César e o que é de Deus, a segunda é qual o paralelismo que existe entre a Bíblia e a Constituição, aparentemente tão díspares, para levar o futuro procurador-geral da República a cunhar a frase citada.

O que daremos em troca de nossa própria alma

Em nossos tempos, César é o Estado. Gostemos ou não, dele emana toda a ordem social instituída. Anarquistas à esquerda e neoliberais à direita sonham com uma sociedade sem Estado – mas, na realidade de hoje, esse sonho parece mais uma ilusão ideológica do que um ideal próximo.

A César (o Estado) cabe cuidar do bem-comum, garantir a justiça e a manter harmonia entre os seres humanos. Dependendo da história de cada país, das escolhas de cada povo, o Estado se organizará de formas diversas, mas de um modo ou de outro deve cumprir essas atribuições. Para isso lhe é dado um poder, que não é absoluto, mas objetivamente muito grande.

Cabe às pessoas, usando a sua liberdade, construir o Estado. Para isso, Deus nos deu discernimento e autonomia. É verdade que frequentemente usamos nossa autonomia com pouco discernimento e que alguns poucos eliminam, direta ou indiretamente, a autonomia de muitos, mas esse é o mundo dos seres humanos, espaço do Estado laico, reconhecido pela própria Igreja (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 571-572).

Mas, então, o que é de Deus? Se a ordem social pertence a nós, e nos cabe trabalhar para uma sociedade cada vez melhor, o nosso coração é de Deus. A Ele pertencemos e, conforme a conhecidíssima expressão de Santo Agostinho, por Ele ansiamos e só Nele encontramos nossa paz. Nem todos os seres humanos se reconhecem pertencendo a Deus, mas, toda vez que fazem o bem, participam de alguma forma da graça que Ele espalha sobre o mundo. Inversamente, quando fazemos o mal, criamos um mundo à nossa imagem, mas que não corresponde à vontade Deus. Usamos a nossa autonomia e nosso senhorio sobre o mundo, mas perdemos o sentido de nossa vida... E “de que nos vale ganhar o mundo inteiro, se perdermos a nós mesmos? o que daremos em troca de nossa própria alma?” (cf. Mc 8, 36).

A inspiração e a imposição

Voltemos à frase de Paulo Gonet... Ao qual não conheço e do qual não faço nenhum julgamento, apenas espero – como todo brasileiro – que cumpra bem seu dever... Insisto nessa frase porque suscita uma reflexão que me parece significativa em nossos tempos.

Como exposto acima, a Bíblia e o magistério social da Igreja não podem ser vistos como programas políticos ou códigos jurídicos. Referem-se a princípios éticos que ajudam o ser humano a ser mais feliz e realizar melhor o bem-comum. Diferem, obviamente, de uma Constituição nacional.

Contudo, as leis, para serem justas, devem procurar atender às necessidades e à vocação natural do ser humano – e, nesse sentido, a Bíblia e o magistério social da Igreja podem ser uma grande referência para que tenhamos boas legislações. Mas, se as leis são intrinsicamente impositivas – pertencem ao mundo de César; as normas que nascem da sabedoria cristã são sempre um convite lançado à liberdade humana – e como tais devem ser vistas e anunciadas aos demais (o que não impede a sociedade civil de criar leis que se baseiem nessas normas). Esse caráter inspirador e não impositivo distingue, do ponto de vista político-institucional, a doutrina católica da norma constitucional.

No mundo sociopolítico, aquilo que é inspiração para o bem-comum (a mensagem cristã) não pode ser imposição de conduta (como deve ser a lei civil); mas as normas impositivas (derivadas de um “contrato social” firmado entre os seres humanos) precisam de uma inspiração maior (a sabedoria do humanismo religiosos) para não se perderem em posições e interesses privados ou jogos de poder.

Chamados a dar testemunho

A comunidade religiosa e seus líderes são um espaço natural para que as pessoas encontrem inspiração e orientação em sua vida. Têm a grande responsabilidade de testemunhar a Verdade e o Bem aos que vêm a sua procura. Aqueles que encontram ali a resposta a suas inquietações, naturalmente tendem a confiar na instituição religiosa, em suas palavras, nos irmãos de fé e em suas lideranças. Isso é bom, mas implica em dois cuidados: (1) não querer que uma inspiração verdadeira se torne uma imposição injusta; (2) estar atento para com os aproveitadores que declaram a fé em seus discursos, mas a traem em sua prática.

Deus criou o ser humano livre, dotado de autonomia, para escolher o bem. Dentro dos limites do respeito à vida e da construção do bem-comum, os cristãos devem reconhecer essa liberdade naqueles que não tem a mesma fé. Escandalizar-se ou tentar impor uma conduta são as formas mais fáceis de perder credibilidade e a chance de poder dar um testemunho adequado aos demais. Infelizmente, diante de muitos descalabros que constatamos no dia-a-dia, temos frequentemente a tentação de ceder tanto ao escândalo quanto à imposição, mas isso seria querer fazer da Bíblia uma Constituição, de querer que um “nosso César” ocupasse o lugar do Deus verdadeiro.

Além disso, muitos políticos e líderes tentam se aproveitar da fé sincera das comunidades, professando princípios cristãos, mas os traindo miseravelmente quando não correspondem a seus interesses. Esse é o motivo pelo qual a Igreja deixou de incentivar diretamente a formação de partidos explicitamente cristãos (cf. CDSI 573-574). Os católicos se sentiam no dever de votar nesses partidos, mas os candidatos muitas vezes eram cristãos só na hora da campanha, traindo e envergonhando posteriormente as comunidades.

Isso não quer dizer que os católicos e os demais cristãos não possam se organizar em frentes e associações. Contudo, ao fazerem isso, devem demonstrar, com seu testemunho e sua coerência, ser dignos do voto e do apoio de seus irmãos de fé... Assim como todos nós somos chamados a testemunhar, beleza da vida e do amor ao próximo, que nosso coração é “de Deus” e não “de César”.